Torne-se perito

Damien Hirst O império da caveira contra-ataca

Damien Hirst não é um artista, é um império. Um império com toque
de Midas. Em Setembro, e 20 anos depois do nascimento da Young British
Art, o mercado volta a ajoelhar-se aos seus pés. Por Vanessa Rato

a Foi o homem do tubarão. Até se transformar no homem da caveira. Até se transformar no homem do bezerro dourado. Foi também o mais explosivamente bem-sucedido e mediático artista britânico da década de 1990. Até se transformar no mais despudoradamente rico e mediático artista britânico dos anos 00. Digam o que quiserem: aos 43 anos, Damien Hirst tem o mundo na palma da mão - a mesma mão agraciada com o toque de Midas que tem vindo a transformar em ouro tudo aquilo em que pega. Literalmente.
É o seu dom e, como não podia deixar de ser, a sua maldição. Que o diga a última vítima.
Hirst chamou-lhe simplesmente The Golden Calf, ou seja, O Bezerro Dourado. Mais ou menos o que o título e o que já se sabe da obra de Hirst sugerem: um jovem bovino de pelagem clara que acabou mergulhado num tanque de formol depois de receber cascos, cornos e um adorno de cabeça em ouro de 18 quilates.
É esta a peça chave do mega-leilão que o artista tem marcado para dias 15 e 16 de Setembro na Sotheby's, em Londres. Com Hirst, há duas décadas que andamos a ser arrastados de acontecimento em acontecimento e a operação de rentrée montada com a segunda maior leiloeira do mundo para celebrar os 20 anos da Freeze, a exposição que em 1988 lançou a geração da Young British Art (YBA) e de que Hirst foi figura de proa, não é excepção - pelo contrário. Ainda antes de acontecer - e deixando o esfumar da energia geracional da Young British Art para mais tarde... -, Beautiful Inside My Head Forever já está na história como o primeiro leilão de sempre em que um artista salta descaradamente por cima das leis não escritas do mercado e, em vez de deixar os negócios nas mãos das suas galerias, decide pôr-se à venda pela melhor oferta, para mais, através de uma verdadeira avalanche de inéditos: 223 trabalhos feitos especificamente para a ocasião, muitos dos quais obras verdadeiramente multimilionárias.
"Um projecto" que deixou "obviamente entusiasmadíssimos" todos os funcionários da leiloeira e cujo planeamento e desenvolvimento aos longo dos últimos 18 meses "tem sido incrivelmente excitante", vai-nos explicando Cheyenne Westphal, a loiríssima presidente do departamento de arte contemporânea da Sotheby's Europa, em breve conversa telefónica.
A excitação na Sotheby's não é para admirar. E não é caso para menos quando as expectativas totais de vendas ultrapassam os 82 milhões de euros, quando com uma só peça (precisamente The Golden Calf) se espera fazer mais de 15 milhões de euros e quando o nome do artista por detrás de tudo isto oferece garantias quase absolutas.
Damien Hirst: sobretudo desde que há 13 anos assumiu como manager um até então desconhecido contabilista irlandês chamado Frank Dunphy, este nome deixou de corresponder apenas a um artista para passar a denominar um verdadeiro império, um império com cerca de 100 funcionários e que é apontado como o mais lucrativo em actividade no universo da arte contemporânea. O mesmo império que no ano passado produziu e vendeu aquela que se tornou na mais cara obra de arte contemporânea de sempre: um crânio em platina incrustado com 8500 diamantes.
Moldado a partir de um original setecentista e com um custo de produção estimado em 17,8 milhões de euros, foi comprado por 63,5 milhões por um grupo de investidores de identidade não revelada mas do qual Frank Dunphy já confirmou que Hirst faz parte.
Podíamos ter exclamado "Por amor de Deus!", mas seria redundante: ele antecipou-se e escolheu exactamente essa frase (For the Love of God) como título para a peça.
Um Cavalo de Tróia
A ironia é uma constante na obra de Hirst e uma das suas componentes essenciais, apesar de um negrume subjacente, ligado à exploração de temas como as relações dinâmicas entre a morte e a vida, o belo e o terrível. Em 2007, For the Love of God e a operação montada à volta da sua realização e venda foram um exemplo do seu tipo de humor, do tipo de questionamento que faz sobre o mundo da arte e da sua capacidade de provocação. Um ano volvido, The Golden Calf e o leilão da Sotheby's, são um novo esticar da corda.
"Sim, eu e o Damien discutimos as implicações simbólicas do bezerro dourado", reconhece a rir Tim Marlow, responsável de exposições da reputada White Cube, a galeria que representa o artista na Grã-Bretanha. "É uma escultura absolutamente espantosa, um marco", diz este curador, que tem trabalhado com Hirst no leilão da Sotheby's. The Golden Calf, pois: da antiguidade clássica ao Egipto Antigo, do cristianismo ao hinduísmo, a História está cheia de bezerros e bois dourados, mas, segundo a Torah, o primeiro terá sido feito por Aaron para o povo de Israel, deixado órfão quando Moisés desapareceu por 40 dias e 40 noites no Monte Sinai. Um símbolo da possibilidade de destruição de todo um sistema de fé, na hipótese da adopção do deus Egípcio Apis pelos israelitas num momento em que, no Monte Sinai, Moisés recebera já o Segundo Mandamento, a proibir a idolatria.
No caso da história de Aaron o bezerro dourado seria um símbolo da destruição do sistema de fé, no caso da história de Hirst, da destruição do sistema de fé montado à volta do mercado da arte. Uma espécie de Cavalo de Tróia com mais de 200 outras obras na barriga e uma capacidade bélica a medir em cifrões. Só que, neste caso, a possibilidade de destruição é, realmente, apenas simbólica.
Tim Marlow, por exemplo, assegura que a relação entre a White Cube e Hirst está de óptima saúde, que a galeria está longe de se sentir ultrapassada com o leilão e que aceitou a ideia pacificamente e até com "entusiasmo".
"Da relação entre a White Cube e Damien só se pode esperar o inesperado", diz Marlow que recorda o leilão de 2004, também com a Sotheby's, de todos os conteúdos - tudo, das esculturas de parede, às cadeiras, cinzeiros e loiças de casa-de-banho - de Pharmacy, o restaurante do artista, e o financiamento, no ano passado, a For the Love of God, com seus milhões em diamantes: "É uma relação pouco usual, mas com o Damien sempre foi assim."
Uma relação invulgar ao ponto de haver quem diga que, em vez da habitual divisão a meias, Hirst atingiu uma robustez de mercado tal que fica com 80 por cento dos resultados das suas vendas em galeria, em vez dos habituais 50 por cento para cada lado.
Marlow não fala de números, mas garante uma coisa: que nem mesmo os coleccionadores que costumam comprar na White Cube se vão sentir defraudados com a quebra no acesso privilegiado a novas obras que o leilão da Sotheby's implica: "Os artistas e as suas opções de percurso são a nossa maior preocupação. Informámos os coleccionadores. Têm sempre a opção de estar no leilão."
Tudo em ordem, pois, tanto na trincheira do mercado primário (o das galerias de representação directa) como na frente de batalha do secundário (o dos leilões e galerias de revenda), asseguram tanto a White Cube como a Sotheby's. Até porque, por outro lado, não é de prever uma bola de neve com centenas de artistas a tentar seguir os passos de Hirst, dizem tanto Tim Marlow como Cheyenne Westphal.
"O Damien Hirst é brilhante e tem um mercado tão global que se pode permitir isto, mas não há muitos artistas nas mesmas condições, não é uma coisa que qualquer artista possa repetir", diz a responsável pelo departamento de arte contemporânea da Sotheby's. "Claro que ele está a mostrar ao mundo uma nova maneira de vender arte, mas não é coisa que vá mudar o mercado. Aliás ele mesmo foi muito explícito: é uma experiência, depois vai continuar com as galerias", sublinha esta especialista.
Artistas como os norte-americanos Richard Prince e Jeff Koons ou como o japonês Takashi Murakami talvez tivessem mercado para uma proeza semelhante, mas também é preciso a atitude - e que essa atitude seja minimamente coerente com um percurso não só pessoal como artístico. Por outro lado, e mesmo para alguém como Hirst, não é uma opção completamente isenta de riscos. Que aconteceria afinal se, inesperadamente, o mercado reagisse com frieza?
Do tubarão ao unicórnio
A Sotheby's tem desde quarta-feira, e na íntegra, o catálogo do leilão disponível online (www.sothebys.com). Para The Golden Calf a base mínima de licitação é de dez milhões de euros, mas a expectativa de venda da leiloeira ultrapassa os 15 milhões. Depois, é ir passando páginas. Na já longa sequência de animais conservados em formol que em grande medida fizeram a fama de Hirst, há ainda uma zebra, numa peça intitulada The Incredible Journey, e um potro branco transformado num feérico unicórnio intitulado The Dream, ambos uma base mínima de licitação de 2,5 milhões de euros e uma expectativa de venda de 3,8 milhões. Mas há também um tubarão, mais um - a terceira variação sobre uma das mais conhecidas obras do artista, The Physical Impossibility of Death in the Mind of Someone Living, um trabalho financiado em 1991 pelo conhecido publicitário e coleccionador de arte contemporânea Charles Saatchi, o grande mecenas e orquestrador da imagem e impacto do movimento informal conhecido como Young Bristish Art que na década de 1990 produziu uma verdadeira revolução na cena internacional da arte contemporânea e que teve Hirst a navegar a crista de uma onda composta ainda por nomes como Sarah Lucas, Tracey Emin, Chris Ofili e a dupla Jake e Dinos Chapman.
Com um tubarão-tigre de mais de quatro metros pescado propositadamente na Austrália para o efeito, The Physical Impossibility of Death... é normalmente assumido como o grande momento de síntese da obra do artista. Foi uma das peças que em 1992 lhe valeram a primeira de duas nomeações para o Prémio Turner, o mais importante do mundo para as artes plásticas (venceu-o à segunda, em 1995). Ficou na Colecção Saatchi até há quatro anos, quando o publicitário começou a desfazer-se de muitas das obras da geração YBA, transformando, só com esta obra à época arrasada pelos tablóides e a crítica britânica mais conservadora, um investimento inicial de 63 mil euros num retorno de cinco milhões, uma quantia que a Tate Modern não conseguiu reunir para garantir a permanência em Inglaterra daquele que é hoje um dos ícones maiores da arte contemporânea britânica - apesar da polémica, um europeu que queira hoje ver o tubarão de Hirst terá que investir numa viagem aos Estados Unidos e ir ao Metropolitan Museum of Art (Met), de Nova Iorque, onde a peça fica até 2010 por empréstimo do seu novo proprietário, o investidor Stephen A. Cohen.
A versão a leiloar em Setembro, de novo com um exemplar de Galeocerdo cuvier, intitula-se The Kingdom e tem uma base mínima de licitação de cinco milhões de euros e uma expectativa máxima de venda de 7,5 milhões. Depois - e estamos a ainda a virar páginas do catálogo -, há toda uma panóplia de obras, desde pequenas esculturas (por exemplo um modelo de esqueleto pintado pelo artista com uma base mínima de licitação de 76 mil euros), até desenhos (a partir de 25 mil euros), passando por mais algumas das conhecidas spot paintings que o artista começou também a desenvolver na década de 1990 (a partir de 127 mil euros) e trabalhos da mais recente série das borboletas (a partir de 38 mil euros).
"É claro que os leilões envolvem sempre uma certa dose de risco. Nada é impossível. De agora até 15 de Setembro muita coisa pode mudar, mas, na verdade, espero que se façam mais do que 82 milhões de euros. Esperamos vender todas as obras. São peças atractivas", diz Cheyenne Westphal.
Há maneiras de jogar o mais possível pelo seguro, e Westphal confirma: "Podíamos ter subido os preços." Mas Tim Marlow diz que, na verdade, Hirst não está preocupado com o que possa acontecer. "É um risco que ele assume. Aliás, tudo o que o mercado diz para não fazer ele diz: 'Que se lixe, vou fazer!' Tem feito e tem sido incrivelmente bem sucedido."
Opções inesperadas
É um facto - com uma fortuna pessoal que há três anos o artista dizia rondar os 150 milhões de euros, provavelmente excluindo a sua Murderme Collection, com cerca de mil obras de amigos como Tracey Emin e Sarah Lucas mas também de artistas tão cotados como Francis Bacon, Richard Prince e Andy Warhol, Hirst tem tomado opções de mercado realmente inesperadas. Por exemplo, como quando no ano passado pôs 10 milhões de euros só em esculturas nas mãos de Hilário Galguera, um amigo mexicano com uma galeria de arte que há época tinha menos de um ano e que levou as peças ao estreito mercado da Arco, de Madrid, num one man show que acabou por se tornar na sua primeira exposição de sempre em Espanha.
"Ele é extremamente criativo, livre e muito consciente do mercado", sublinha Tim Marlow, segundo o qual um dos objectivos do leilão é "ir ao encontro de novos coleccionadores, alargar o mercado".
Não, diz este especialista, Hirst não está nada preocupado com a possibilidade do desaparecimento numa colecção obscura num país como a Rússia ou a China de uma obra como The Golden Calf, que ele próprio considera estar entre os seus quatro trabalhos-chave, até hoje - ao lado de A Thousand Years (1990), The Physical Impossibility of Death... (1991) e For The Love of God (2007).
"Também falámos disso, mas o Damien diz que, neste momento, a sua única preocupação tem que ser fazer o melhor trabalho possível. Aliás, ele até diz que, de qualquer forma, os seus trabalhos já se parecem com qualquer coisa que as pessoas podem guardar no sótão."
Mas há quem diga que no sótão - o de sua própria casa - é precisamente onde Hirst está a tentar impedir que acabem algumas das suas obras. Num dos dois artigos que já publicou sobre o tema, Sarah Thornton, colaboradora regular da publicação especializada The Art Newspaper diz que na última edição da feira de Basileia, tida como a mais importante e lucrativa do mundo, muitos dos seus trabalhos ficaram por vender. Diz também que num momento em que os galeristas estão a sentir um certo abrandamento do mercado, há quem ache que Hirst está a antecipar-se, organizando uma espécie de venda de fim de boom, o boom que tem animado o mercado da arte contemporânea nos últimos anos e a cujo declínio Hirst está a reagir tentando não ficar com um excesso de produção em mãos.
Sarah Thorton lança as maiores dúvidas sobre o aparente à vontade tanto da White Cube como da galeria que representa Damien Hirst nos Estados Unidos, a Gagosian: "Não vão gostar nem um bocadinho, mas são obrigadas a apoiar ou subscrever o leilão em prole dos seus clientes que investiram na carreira de Hirst e pela continuidade da sua própria relação com o fluxo de rendimento que ele lhes traz."
A White Cube e a Gagosian "vão estar a licitar uma contra a outra pela atenção de Damien", lê-se no artigo que cita ainda o coleccionador e galerista norte-americano David Mugrabi, um dos maiores coleccionadores privados da obra de Andy Warhol, que diz: "Parece ser um jogo para o Damien. Ele está a ver se consegue fazer com que o crime compense, tal como o Duchamp fez com o seu urinol." Cita também Oliver Barker, um dos especialistas seniores da Sotheby's, que diz: "Damien é completamente destemido. Não é só um artista notável, é um fenómeno cultural."
No ano passado Hirst falou ao Guardian da sua relação com o seu manager e da forma de encarem negócios. Recordou: "Lembro-me sempre de uma coisa que o Frank me disse no início, logo depois de a minha peça Hymn ter sido vendida por um milhão ao Saatchi. Disse: 'Não te podes preocupar com o valor, Damien. Uma obra de arte só vale aquilo que o próximo gajo decidir pagar por ela. [O Frank] foi a primeira e única pessoa que conheci que percebe o dinheiro a esse nível. E que é honesto."
Este é o alter ego dele.
No catálogo do leilão há ainda uma zebra, The Incredible Journey, e um potro branco transformado num feérico unicórnio intitulado The Dream, ambos com uma base mínima de licitação de 2,5 milhões de euros e uma expectativa de venda de 3,8 milhões
A Sotheby's vai ainda leiloar mais um dos tubarões de Damien Hirst - a terceira variação sobre uma das mais conhecidas obras do artista, The Physical Impossibility of Death in the Mind of Someone Living, de 1991. A nova versão chama-se The Kingdom. Outra das peças a leiloar é The Rose Window

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