João Pinto Pai aos 16, campeão do mundo aos 18, disponível aos 36
Nunca foi muito de jogar à bola no jardim. Mas sabe como ser campeão do mundo, como transformar o corpo num elástico, como ser o "menino de ouro" na Luz e o pai de Jardel em Alvalade. Já sonhou com o FC Porto, já roubou fruta e gelados, já correu risco de vida, já não
é jogador de futebol - será sempre jogador de futebol. Retalhos da vida de João Vieira Pinto
a Só sabe que já era nascido quando isso aconteceu. Isso foi Riade - e Riade foi Riade, a vitória no Mundial em 1989 não se explica. Também ouviu dizer que dois anos depois, em Lisboa, foi passado de mãos em mãos até chegar ao seu lugar na bancada do Estádio da Luz, onde se acotovelavam cerca de 120 mil pessoas. Tiago Pinto não se lembra de nada. O pai, João Vieira Pinto, era um teenager. Nessa noite, foi campeão do mundo pela segunda vez.Aos 20 anos, Tiago vai iniciar a sua carreira na primeira divisão, precisamente no ano em que o pai João, 36 anos, decidiu - depois da despedida do Braga - colocar um ponto final na sua e recuperá-la em forma de retalhos nos jornais, revistas e televisões. Retalhos da vida de um boavisteiro que gostava de ter sido portista, do benfiquista (ele é "o" benfiquista) que se vendeu ao Sporting, do português que ganhou fobia a jogar com camisolas estrangeiras, do futebolista que parecia ter um elástico nas pernas e outro no pescoço, do Cristo de Paulinho Santos, do agressor de Ángel Sánchez - e o árbitro argentino até disse que tudo teria sido diferente se João Pinto lhe tivesse sido apresentado noutras circunstâncias e não em pleno Mundial de 2002, num jogo contra a Coreia do Sul em que Portugal tinha tudo a perder -, do puto reguila que fazia patifarias, roubava fruta e "só imaginava uma coisa na vida: ser jogador de futebol". "Se não o fosse, seria certamente um frustrado", disse a determinado momento da sua carreira ao jornal A Bola.
É um daqueles novelos que parecem não ter apenas duas pontas. "Sou um tipo que as pessoas não vêem em campo, sobretudo quando estão no terceiro anel", diz ele. "Este é o João Pinto que todos conhecemos em Portugal: sempre bem na bola, sem esperar por ela e com um toque fantástico", comentou Carlos Queiroz, segundos depois de João Pinto, na altura órfão de clube, ter marcado o 2-2 frente a Inglaterra no Euro 2000. "Recordo o dia em que a minha mulher disse: 'Aquele loirinho joga bem, não é?' Respondi: 'O problema não é aquele, o problema é escolher os outros dez'", comentou há dias o novo seleccionador nacional a propósito da reforma de "um símbolo".
Paixões e ódios
João Vieira Pinto foi amado e odiado por muitos na noite do 6-3 (goleada do Benfica ao Sporting, em 1994; ele marcou três dos seis golos) - foi o primeiro jogador a receber nota 10 do desportivo A Bola. Foi odiado e amado pelos mesmos sempre que se empoleirava nas costas de Mário Jardel, o seu filho adoptivo.
"Os grandes jogadores geram paixões e ódios", disse ao P2 Emílio Peixe, que conheceu o loirinho aos 14 anos. "Não foi uma estrela internacional porque não quis", junta. E não quis porque o miúdo de 18 anos ficou traumatizado pelo beco sem saída em que se transformou o Atlético de Madrid. "Se a história tivesse sido diferente, seria um dos melhores jogadores da actualidade", completa Peixe, um dos muitos médios defensivos que tiveram por missão destruir o que João Pinto, ambidestro e bom cabeceador, tentava construir. "Destruir é sempre mais fácil. Tivemos muitas discussões em campo, mas no final cumprimentávamo-nos e pedíamos desculpa". Objectivo: "Não deixar virar" o jogador que parece estar sempre virado para o sítio certo. Para evitar estragos maiores.
João Pinto - João Vieira Pinto, JVP - tinha oito anos quando deu um salto ao estádio das Antas, paredes meias com o seu bairro do Falcão. Foi numa manhã de sábado. "Alguém olhou para mim e disse para voltar mais tarde. Senti-me enganado e nunca mais voltei." A bola de cristal apontou na direcção do Águias da Areosa (onde um dia marcou três golos aos "dragões"), mais tarde do Boavista (Valentim Loureiro ainda hoje recorda "aquele menino loirinho que obrigava a que todos reparassem nele").
Dias depois, um emissário do FC Porto propunha-se cobrir a proposta, mas era tarde de mais. "Seria incapaz de dar o dito pelo não dito e disse não ao FC Porto, se calhar o meu grande sonho", recorda João Pinto, que cresceu "orgulhoso" no bairro camarário, criado pela mãe, responsável pela educação de outro filho. "Mas as coisas principais nunca faltaram. Nunca me faltou uma bola de futebol", pode ler-se numa compilação de A Bola sobre as maiores figuras do futebol português. "Aprendi a ser quem sou e a conviver com toda a gente do mesmo modo, desde o Presidente da República ao mais modesto varredor de rua".
Tinha ídolos (Chalana, Oliveira, Gomes e Futre). "Mas aos dez anos só queria ser eu próprio, tentar ser aquilo que sou, sem imitações", conta. Carlos Queiroz recorda outra cena. Um plantel de miúdos a rodear Paulo Futre; à parte, um loirinho que responde assim: "Mister, o meu sonho é que, um dia, seja o Paulo Futre a pedir-me um autógrafo a mim."
Leitura de jogo
Retalhar a vida de João Pinto é falar da barrigada de gelados roubados no congelador do hotel onde os sub-20 estagiavam (Carlos Queiroz obrigou o grupo a pagar o banquete, a fazer as malas, a carregá-las até ao hall e só depois levantou o castigo); é falar dos 500 mil contos que o presidente benfiquista Jorge de Brito pagou por ele; do episódio do fax de Torremolinos (João Pinto, aliciado pelo Sporting, rescindiu com o Benfica por correspondência, mas também esse episódio não passou de um mito); é falar do 6-3 (sempre o 6-3: "Era tal a minha tensão que parecia que as pernas estavam presas e que mãos invisíveis me puxavam a camisola"), é falar de Carlos Queiroz (sempre Carlos Queiroz, atravessado no seu caminho); é falar dos 135 mil contos que ganhava por ano (em Portugal não havia futebolista tão bem remunerado, recebia pouco menos do que Paulo Sousa na Juventus); é falar do mais novo dos campeões de Riade, do capitão da equipa em Lisboa; é falar do pneumotórax detectado nas vésperas de um Escócia-Portugal (e da viagem de emergência Glasgow-Lisboa num avião particular que podia ter sido fatal); do atrito com Vale e Azevedo; de ferver em pouca água; de um longo percurso até conseguir "correr na altura certa" e "estar no momento certo".
O P2 pediu a Tiago Pinto para se abstrair e comentar o estilo de João Pinto. "Um jogador com uma grande leitura de jogo, um futebolista que pensa e executa rápido e que trabalha muito para a equipa. Qualquer jogador ao lado dele tem sucesso", responde o lateral esquerdo do Trofense (lembra-se de correr nas bancadas do estádio do Bessa com o filho de Vítor Paneira e de subir ao relvado do estádio da Luz de mão dada com o pai na noite de consagração do título do Benfica).
A opinião do filho? "Para a família esta profissão infelizmente tem alguns contras. Sempre passou pouco tempo em casa, chegava cansado e nunca foi muito de jogar à bola no jardim. Sempre foi um pai equilibrado, não muito severo nem demasiado benevolente. Repreende e elogia sempre que é preciso."
Emílio Peixe deixa uma história que tem muito da vida de João Vieira Pinto. Decorria o Campeonato Europeu de sub-16, em Espanha. Portugal acabava de bater a Bélgica com um golo do loirinho. "Tinha comprado um chocolate gigante para oferecer à minha família, mas disse ao João que tinha todo o gosto em que ficasse com ele pelo jogo que fez, pelo golo que marcou e pelo facto de dias antes ter sido pai."