Anarchy in the USA

Sem medir as palavras: "O Cavaleiro das Trevas" é o apocalipse urbano pós-11 de Setembro, a metrópole sitiada pelos insurgentes, o medo diário do terrorismo vindo de parte nenhuma, metaforizada na cidade a ferro e fogo às mãos de um psicótico imprevisível. A ideia da cidade a ferro e fogo já estava no "reboot" que Nolan fez ao "franchise" do Homem-Morcego em 2005 com "Batman - o Início" - e sempre existiu no universo dos super-heróis - mas em todos os episódios anteriores estava ainda incluida numa dimensão fantasista. Aqui, Nolan depurou a produção cenográfica para instalar o filme numa banal metrópole americana, sem a estilização surreal a que nos habituámos para nos dizer que "isto é só um filme", usando actores sem "imagem de marca" (ou contra as suas imagens de marca) para nos afastar das codificações do filme de super-heróis.

Aqui, estamos no mundo real: Batman não tem super-poderes, é apenas um homem torturado que utiliza a tecnologia de ponta para fazer aquilo que mais ninguém pode - ou que mais ninguém quer. Aqui, o vilão não é um homem como outro qualquer: é o Mal absoluto, a anarquia pura. O Joker de Tim Burton, sob os traços de Jack Nicholson, era apesar de tudo uma personagem razoavelmente convencional, um gangster movido por vingança. O Joker de Nolan, habitado por um assombroso e irreconhecível Heath Ledger (e sim, a interpretação é tão extraordinária como têm ouvido dizer), é uma cifra, um mistério, alguém que não procura lucro, fama, prazer. Este Joker é uma espécie de abstracto - como se a escuridão de Batman o tivesse invocado para o pôr à prova, num equilíbrio quase zen entre o Bem e o Mal onde as fronteiras se diluem e as definições se confundem. O Joker de Nolan e Ledger é irredutível, medo em estado puro - e o modo como o realizador o coloca como âncora e bússola do filme (reduzindo o Batman intenso mas contido de Christian Bale a mais uma personagem num certeiro elenco de conjunto) faz "O Cavaleiro das Trevas" erguer-se muito para lá do tradicional filme de super-herói.

Ou antes: quem vier aqui à espera de entretenimento pop descartável pode desde já tirar o cavalinho da chuva. Burton trazia ao de cima a escuridão de Batman ainda dentro de um quadro estilizado de BD, Joel Schumacher ia na direcção oposta ao encenar ("Batman para Sempre", 1995, "Batman & Robin", 1997) um Batman feérico, leve e colorido, mais próximo da série dos anos 1960. Mas Nolan ejecta tudo o que possa ser etiquetado como BD para deixar apenas um filme com estrutura de policial clássico, visual de aventura urbana e alma de tragédia operática. É abusivo recordar "O Padrinho" (e sobretudo o seu mal-amado terceiro episódio) mas esta é, na verdade, uma tragédia do fim do império, com um vilão apostado em instaurar o caos e um herói torturado como única barreira entre a civilização moderna tal como a conhecemos e a anarquia absoluta.

Sim, sabemos que, no papel, isto é apenas mais um filme de superheróis. Sim, sabemos que isto é um filme americano produzido por um grande estúdio. Mas sabemos, também, que o milagre de "O Cavaleiro das Trevas" é cumprir todo esse caderno de encargos e, depois, dar-nos mais do que estaríamos à espera. E, sobretudo, de nos deixar a pensar. Qual foi o último "blockbuster" americano de super-heróis que nos fez isso? (E não vale a pena citar o "Batman" de Burton. É batota.)

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