Herat A cidade de todas as artes
Sopradores de vidro que foram mujahedin. Músicos, arquitectos, calígrafos em busca do tempo perdido. Herat são muitas cidades, mas em todas elas o Vento dos 120 Dias parece soprar uma tradição muito antiga, desde a corte em que rei e rainha eram um par.
Por Alexandra Lucas Coelho, em Herat
1. Os minaretes da rainha
O Afeganistão teve muitas mulheres de rei e teve uma rainha. Chamava-se Gowar Shad. Tão poderosa foi que ainda hoje os homens falam dela com veneração, os homens de um país de homens.
E na mítica cidade de Herat, junto à fronteira com o Irão, vivem no esplendor de tudo o que ela criou, como este jardim: "É o jardim da Rainha do Afeganistão", diz o guarda Ghulam Haidar, túnica pobre e semblante imperial, coroado por um turbante.
O que ainda brilha aqui é "o mais belo exemplo de cor em arquitectura alguma vez concebido pelo homem para glória do seu Deus e de si próprio", escreveu o viajante Robert Byron, autor de A Estrada Para Oxiana, um livro de culto, publicado em 1932.
Aqui, Gowar Shad mandou erguer no século XV um "lugar de oração" (musalla) que fosse o auge da arquitectura timurida.
Na fundação do império timurida, a capital era Samarcanda. Mas depois da morte de Timur (ou Tamerlão), o seu filho Shah Rukh mudou a corte para Herat.
Shah Rukh ficou para a História como um grande patrono das artes e das ciências, e incentivou pensadores, artistas e artífices. Herat tornou-se a cidade de todas as artes, caligrafia, poesia, música, pintura, azulejaria. E boa parte disto passou pela rainha Gowar Shad, mulher de Shah Rukh.
Foi ela quem fez a arquitectura de Herat aspirar a um requinte inédito em grandeza e minúcia.
A começar por este jardim, onde 20 minaretes colossais subiram para o céu, ricamente adornados com mosaicos e inscrições persas, em lapis-lazuli, azul escuro, vermelho, ocre ou branco.
Durante séculos sobreviveram ao Vento dos 120 Dias, que no Verão começa a soprar em Herat, vindo do deserto, e levanta areia escaldante.
Até que, em 1885, o exército britânico tomou uma das decisões mais negras da sua história e dinamitou a área, por temer uma investida russa. Era o tempo do Grande Jogo, como ficou conhecido o duelo entre britânicos e russos pelo controle estratégico do Afeganistão. Convinha aos britânicos arrasar o que estivesse no campo de visão, para avistar o inimigo. E portanto metade dos minaretes explodiram, género budas de Bamiyan.
Quando cá chegou, Robert Byron ainda conseguiu imaginar o que terá sido uma "mesquita como nunca outra, antes ou depois".
E hoje ainda se consegue, mas é preciso imaginar mais, porque só restam cinco minaretes.
A seguir a Byron, vieram dois terramotos e a invasão soviética.
Um tanque soviético continua ao fundo do jardim, junto a um dos minaretes, e há avisos de mina.
De resto, todos os minaretes perderam a maior parte da cobertura de azulejos. Sobram fragmentos, e pombos a saírem dos buracos, lá no alto, onde entretanto muitos ninhos terão sido feitos.
A esses não é possível chegar.
Mas Ghulam Haidar, o guarda do jardim, conhece de cor os ninhos no santuário da rainha, com uma cúpula coberta de azulejos e o interior delicadamente pintado.
Gowar Shad, que viveu até aos 80 anos - feito ainda hoje lendário no Afeganistão, onde a esperança de vida é metade -, morreu assassinada, entre intrigas políticas, quando tentava impor um filho como rei.
O santuário contém a sua pedra tumular, e as de descendentes seus.
Ao canto estão várias inscrições de pedra e restos amontoados, que o guarda Ghulam usa como esconderijo de uns azulejos ainda inteiros, talvez caídos da cobertura da cúpula.
E depois de os revelar, Ghulam sai do santuário, volta à direita, abre uma portinhola na parede do edifício e começa a subir umas escadas de pedra íngremes por onde ninguém deve passar há algum tempo, porque o chão está cheio de penas, terra, e há um pombo morto.
É por aqui que se sobe ao varandim da cúpula, de onde se avista todo o jardim, com jovens macieiras, pinheiros e damasqueiros plantados pelo guarda Ghulam. Lá estão os quatro minaretes tortos, à entrada do deserto. E, do lado oposto, o quinto minarete junto ao tanque soviético.
Mas Ghulam ainda insiste em voltar à escuridão das escadas e a partir daí trepar para uma espécie de abóbada, interior, mesmo junto ao tecto. Quase não há luz, e a princípio parecem morcegos a esvoaçar, mas são pombos. E quando os olhos se habituam à escuridão, Ghulam estende a mão respeitosamente para conduzir até à beira da abóbada, onde se vêem dois ovos ainda inteiros e dois pombos já nascidos, minúsculos.
De regresso ao chão, os dois guardas fardados continuam à sombra, com ar de que nunca se passa nada, e Ghulam mete-se pelo jardim onde às sextas-feiras só as mulheres podem entrar.
Calha que é sexta. Ele não conta, porque é guarda-jardineiro. Entre as árvores há grupos de mulheres sentadas à sombra, a fazerem piqueniques com crianças. E por todo o jardim, entre o santuário e o tanque soviético, crianças a correr no jardim da rainha.
Para chegar aos minaretes maiores, é preciso sair do recinto do santuário e chegar ao caminho onde Herat acaba e o deserto começa. Já depois da queda do regime taliban, asfaltaram-na, ou seja, começou a haver trânsito a sério entre os minaretes. Quando os danos se tornaram evidentes, cortaram a estrada. É assim que continua.
O céu está azul como não em Cabul. E passa um homem a empurrar um carrinho de gelados aos pés do minarete maior. E passa um rebanho de cabras. E passam dois turistas.
Dois turistas?
"Sim, somos turistas, viemos à boleia do Uzbequistão", confirma alegremente o de cabelos mais compridos, com uma bandeira inglesa na mochila. As duas mochilas são devidamente pequenas. E eles estão de sandálias e túnicas afegãs cor de terra. Podiam ser afegãos, se não fossem rapazes ingleses muito magros, altos e louros, com cabelos compridos mas sem barbas, e os narizes encarnados, a pelar dos 50 graus ao sol.
Parece demasiado excêntrico estarem aqui para serem espiões.
Devem ser turistas.
2. Aos pés da cidadelaUma das grandes obras do rei Shah Rukh, quado mudou a capital para Herat, foi reeguer a cidadela que o seu pai Timur e, séculos antes, Gengis Khan, parcialmente tinham destruído.
Entretanto houve muitos outros danos, mas a cidadela continua de pé e impressionante, como um castelo de terra.
É a seus pés que fervilha um dos bazares centrais da cidade. Grandes sacos cheios de sementes, leguminosas e temperos coloridos. Tendas com vistosas vassouras de palha, abertas como leques no passeio. Carneiros pendurados. Só homens e algumas mulheres de burqa.
Mohammed Daud, 28 anos, arquitecto, contorna uma banca de roupa para chegar à antiga cisterna do século XIV.
"Este é o meu primeiro projecto de restauração", diz, e a voz ecoa. "Estava cheio de água, para quando o inimigo vinha e cercava a cidade. Podiam usar esta água seis meses."
Daud está a trabalhar com a Fundação Aga Khan na recuperação da Cidade Velha de Herat, um raro exemplo de cidade medieval murada. Trepando ao tecto da cisterna, distingue-se a trama de ruas e tectos de terra batida, até aos minaretes colossais, lá ao fundo, de que só se vêem as pontas, por causa de um edifício espelhado verde-garrafa de sete andares, que parece caído de outro planeta no horizonte da cidade.
Mas há vários casos em Herat, desde que se vem do aeroporto por uma fresca avenida de pinheiros.
No meio das casas de terra batida, que têm uma espécie de chaminé curva para o Vento dos 120 Dias entrar, vêem-se condomínios de cimento com muitas janelas espelhadas, um erro por fora e por dentro, numa cidade tão quente como Herat.
A construção em terra batida e tijolos de adobe, reforçada periodicamente com palha e mais terra, mantém o fresco no Verão e o calor no Inverno, como acontece aqui na Cidade Velha.
Daud desce da cisterna para o bazar, e enfia-se por uma reentrância onde um rapaz vende salsa num monte maior que ele próprio. Mas o que parecia uma reentrância é uma passagem que conduz ao interior do labirinto.
Aqui começa todo um outro mundo. Na mesquita logo à direita, também inteiramente recuperada, meninos e meninas recitam o Corão, sentados em tapetes, numa espécie de grande varanda sobre o pátio, onde há um pinheiro e uma amoreira. As janelas são de madeira esculpida, com os delicados desenhos e relevos de há centenas de anos, que artífices novos estão a aprender com velhos.
Nada está parado. O que é antigo continua, o que é velho muda. Rua a rua, homens com carrinhos de mão e chapéus largos por causa do sol estão a construir toda uma rede subterrânea de esgoto, depois rematada por um pavimento que é uma espécie de calçada ocre.
O velho canal de desperdícios corria entre os pés das crianças, exactamente a meio da rua, onde agora está aberto em alguns pontos. E agora, nas ruas já pavimentadas, as crianças jogam à bola ainda entre frescas paredes de terra batida, mas sem lama, sem pó e sem esgoto.
Daud desvia-se para mostrar uma grande casa de habitação com 300 anos, com um grande pátio interior, fonte e frondosa amoreira. No primeiro andar, as portadas de madeira já estão completas, mas no piso térreo ainda há rapazes a aplainar e esculpir.
"Acabei agora esta", diz Daud. "Era uma casa típica da Cidade Velha, de uma mercador local, uma grande família judia. Também já recuperámos uma sinagoga."
No interior vê-se o badguir, a abertura que permite que o vento entre e circule, refrescando a casa.
Mais à frente há um cemitério, com as lápides muito verticais e juntas, algumas junto a pedaços de tecidos coloridos agarrados a ramos de árvores. São pedidos de crentes. O equivalente islâmico a deixar uma vela. Outra forma de fé é deixar bolinhas de lama em cima dos túmulos. Quando seca, põem-se num quisto e cura.
Depois de uma padaria onde um sorridente homem de barbas vai metendo pazadas de massa a toda velocidade no forno, chega-se ao forno onde se fazem os históricos vidros coloridos de Herat. É em terra batida, aliás um rapaz está a remendá-lo como se fosse um oleiro, com as mãos cheias de terra, salpicando de água e moldando uma das entradas por onde se sopra o vidro.
No anos 70, o fotógrafo da Magnum Elliot Erwitt veio a Herat e fez um documentário sobre os artesãos do vidro. Um dos protagonistas era um jovem moreno, de barbicha, Sayedullah, e Erwitt fez um poster com ele.
Esse poster agora está numa sala cheia de vidro azul, porque é a sala onde Sayedullah reúne e mostra o que faz.
Ei-lo, o jovem moreno de barbicha, agora com "provavelmente 50 anos", grisalho, pai de três filhos ("quatro morreram") e quatro netos.
Olhando com atenção, o nariz de águia é o mesmo, e o olhar para a câmara também, com quem gosta mesmo de ser fotografado.
"O vidro foi uma herança. O meu bisavô já o fazia, depois o meu pai, que me ensinou. Eu tinha sete ou oito anos quando comecei." Sayedullah tornou-se mestre. "Houve uma competição entre 70 países no Paquistão, e eu fui e ganhei."
Mas soprar vidro não o impediu de ser mujahedin. "Durante a batalha contra os soviéticos combati ao lado de Ismail Khan." O lendário e autoproclamado "emir" de Herat, que o presidente Hamid Karzai entretanto chamou para um posto de ministro em Cabul.
"Fui ferido oito vezes", conta Sayedullah, arregaçando as mangas. "Aqui, aqui..." E mostra a nuca, onde tem uma bala. "Combatemos ao pé dos minaretes, e fomos nós que capturámos a cidadela, onde estavam os comunistas."
Agora está aqui a formar vidreiros, continuando a "fazer à mão o que os países estrangeiros fazem com molde".
E do pátio ao lado chegam sons de percussão, teclas e cordas, e uma voz de homem a cantar.
É a escola de música onde dezenas de homens, alguns ainda crianças, estão a recuperar a prática de instrumentos tradicionais, uma espécie de acordeões que se tocam no chão, de guitarras esguias, de tambores de colo.
Estão sentados em grandes tapetes com desenhos cor-de-laranja e vermelhos, outra arte de Herat.
E no pátio, o sol desce sobre as amoreiras, como há centenas de anos.
3. A mesquita e os sufis
É um bom passeio a pé, daqui à Grande Mesquita, ou Mesquita Azul ou Mesquita de Sexta-Feira, um dos grandes monumentos da arquitectura islâmica.O edifício original é de 1200, no tempo dos góridas, que tinham um gosto mais geométrico que floral e usavam os mosaicos como relevos em alguns pontos.
Depois, os timuridas cobriram a mesquita de azulejos, com flores e inscrições corânicas, como hoje está. A partir de 1943, vários artistas e calígrafos recuperaram-na.
E a recuperação é contínua, na oficina que existe à esquerda de quem entra, onde uma dezena de rapazes trabalha sob a vigilância de Abu Bakr, 72 anos, que aqui está desde os 18. "Em todo o mundo não se pode encontrar uma mesquita assim", diz ele com simplicidade. "É a mais bela do mundo."
E entrando no pátio, com a fachada principal à sua frente, o visitante fica demasiado esmagado para discordar.
Pelo menos assim, num sábado, dia de trabalho, com um céu de sol entre nuvens subitamente dramático, o chão morno debaixo dos pés, e ninguém, numa praça tão monumental.
Em raros lugares do mundo será possível estar dentro de uma criação com esta amplitude e ao mesmo tempo estar sozinho.
Então o muezzin canta e começam a entrar homens.
No tempo do seu reinado, Shah Rukh acrescentou a este e outros lugares de oração o santuário de Gazar Gah, que celebra o poeta e santo sufi Khwaja Abdulla Ansari.
É preciso ir de carro.
Mas mesmo num dia como hoje, sábado, e mesmo ficando este santuário nos arredores, Gazar Gah tem sempre peregrinos, grupos de escolas, mendigos, fiéis que vieram de longe.
Considerado o mais variado exemplo de arquitectura timurida, é todo um conjunto de edifícios, com fabulosas fachadas cor-de-terra, azulejos, tectos pintados e pedras tumulares com complexos relevos e inscrições, algumas das quais ocupam todo o pátio do edifício central, como um cemitério.
Mas um cemitério sentido com os pés descalços, como dentro de uma mesquita.
Noutros edifícios ainda há vestígios de pinturas e inscrições islâmicas a ouro, que o linguista Bruce Wannell está neste momento a estudar. "Oh alma confiante e em paz, volta ao teu senhor, que está contente contigo e tu contente com o teu senhor", traduz Wannell, que podia ficar horas a falar sobre cada uma das pedras tumulares. "É uma relação de reciprocidade entre a alma e Deus. O que mostra o Islão a uma luz completamente diferente. Olhe para estes túmulos de mulheres..." E passa a falar de mulheres que foram grandes e prezadas.
No tempo da rainha Gowar Shad, o poeta da cidade era Jami, mas não vale a pena buscar o seu túmulo aqui.
Está debaixo de uma árvore de pistachios na cidade.
Tal como Gowar Shad, Jami viveu muito além do que viviam os homens do seu tempo. Nascido na província de Jam - daí o nome, Jami -, veio aos cinco anos para Herat e só terá deixado a cidade para ir a Meca, em peregrinação, aos 64 anos. Voltou e ainda viveu até aos 81, tantos como os livros que deixou escritos.
Em Contos do País dos Sufis (de Mojdeh Bayat e Mohammed Ali Jamnia, tradução e prefácio de José Domingos Morais, edição Assírio e Alvim) conta-se como tentou toda a vida desprender-se do egoísmo a ponto de estar pronto para morrer. E tanto sentido de humor teria que, segundo a lenda, levantou-se ao ouvir lamentos estridentes pela sua própria morte, e disse: "Eu morro se não acabarem com a algazarra!"
Do topo da citadela, avista-se toda a Herat e além.
A cidade em subúrbios infectos cheios de refugiados que voltaram do Irão. A cidade de avenidas largas, com pinheiros altos e bandos de raparigas a caminho da escola. A cidade labiríntica, que foi a primeira.
E em todas haverá alguém capaz de citar Jami, desmentindo o que ele escreveu: "Invernos e Estios e Primaveras hão-de passar / E eu nada mais sou senão terra e pó."
Esta é a última de uma série de reportagens em vários lugares
do Afeganistão que começou
a ser publicada no domingo