O homem que inventou a pegada ecológica
Mathis Wackernagel, fundador da Global Footprint Network, que recebe hoje um prémio Gulbenkian, diz que o futuro não é animador. Em 2050 serão precisos dois planetas Terra para suportar as nececessidades de solo arável, água e espaço para ocupação urbana
a Duas circunstâncias da infância marcaram para sempre a consciência ecológica do suíço Mathis Wackernagel. Uma delas foi ter passado sucessivas férias de Verão numa quinta, na bucólica ruralidade helvética. A outra foi a publicação do livro Limites do Crescimento, em 1972, no qual o chamado Clube de Roma lançou um sério alerta sobre os constrangimentos ambientais da Terra e cuja mensagem foi explicada a Mathis, então com dez anos, pelo seu pai.Ambas moldaram o conceito de pegada ecológica (ver caixa) que Wackernagel viria a criar no princípio dos anos 1990, juntamente com o professor William Rees, da Universidade de British Columbia, no Canadá. Hoje, a organização que Wackernagel criou em 2003 para difundir o conceito da pegada - a Global Footprint Network - recebe, em Lisboa, o Prémio Internacional da Fundação Calouste Gulbenkian.
Muitos investigadores torcem o nariz à pegada ecológica, dizendo que se trata de indicador de fácil compreensão, mas débil em termos científicos. O seu co-autor, no entanto, escuda-se numa imagem simples: "Basicamente, olhamos para o mundo como uma quinta. Para produzir batatas, cenouras, criar vacas, gerir os seus resíduos, é preciso espaço. Qualquer agricultor sabe o que a sua propriedade pode suportar."
A pegada nada mais é do que a resposta a uma pergunta concreta: Qual é a capacidade do planeta para produzir serviços ecológicos essenciais e quanta desta capacidade estamos a utilizar? Não é uma pergunta nova. As preocupações sobre os limites da Terra são tão antigas como a própria civilização humana. O investigador Joel Cohen, no livro How Many People Can the Earth Support (1995), identifica referências de há quase 4000 anos.
Óbvio, mas difícil
Muitos modelos, exercícios e estimativas sobre o assunto foram já desenvolvidos. Mas, aparentemente, o da pegada ecológica é o que granjeou maior sucesso público. "É claro que, de certo modo, isto é maravilhoso", diz Mathis Wackernagel ao P2, numa conversa telefónica. "Mas, por outro lado, é uma coisa tão óbvia. É inacreditável que seja tão difícil que este dado básico seja integrado nas políticas públicas."
O sucesso de comunicação da pegada ecológica está na sua expressão em termos de uma área. No mundo todo, há cerca de 1,8 hectares de terrenos produtivos por cada habitante. Mas, em média, cada pessoa utiliza 2,2 hectares. Ou seja, a Terra não consegue repor o que o ser humano consome ao longo de um ano. A conta está no vermelho.
"Só há um planeta, este é o orçamento que temos. Estamos a preparar a bancarrota ecológica, e isto é pior do que uma bancarrota financeira, porque não há outro planeta para nos salvar", alerta Wackernagel.
Alguns centros de investigação estão a trabalhar em indicadores económicos que incorporem a factura ambiental - uma espécie de "PIB verde" -, de modo a melhor reflectir a riqueza. Mas o pai da pegada ecológica acredita que é melhor manter alguma separação.
"Se você é um piloto de avião, você precisa de dados claros do seu painel", exemplifica Wackernagel. "Quer saber a que altitude está o avião, a que velocidade, quanto combustível há a bordo. Você não quer uma média que diga, por exemplo, que o avião está a 70 por cento."
A Global Footprint Network tem feito, no entanto, correlações entre a pegada ecológica e outros indicadores - como o Índice de Desenvolvimento Humano (HDI, na sigla em inglês), que mede o nível socioeconómico de uma nação. Os países com maior HDI - como os Estados Unidos e os da maior parte da Europa (Portugal está em 29º lugar) - são os que têm maior pegada ecológica. No outro extremo, ficam sobretudo os países africanos: reduzida pegada ecológica, mas baixíssimo HDI.
O ideal está no quadrante em que o HDI é elevado, mas a pegada ecológica não é deficitária. Alguns países da América Latina são os que mais se aproximam desta combinação.
O futuro não é animador. Pelo actual ritmo, em 2050 serão necessários dois planetas Terra para suportar as necessidades humanas de solo arável, água, florestas e espaço para ocupação urbana, segundo a Global Footprint Network.
Para Wackernagel, o que isto significa é que os países que já estão no vermelho em termos de pegada ecológica têm de fazer algo rapidamente. "Portugal está a viver nesse mundo", alerta Wackernagel. "Se é verdade que a China estar a usar cada vez mais recursos, isto não é argumento para que não se faça nada em Portugal. Apenas torna mais urgente que Portugal se prepare para esse futuro, assegurando que não depende do défice ecológico", acrescenta.
A pegada ecológica pode ser um instrumento essencial para abrir os olhos dos países, segundo Wackernagel. "É disparatado que os países não queiram ter essa informação. É como uma pessoa dizer: 'Eu não quero receber o meu extracto bancário.'"
Problema colectivo
A Global Footprint Network está a tentar inverter esta situação. Em 2005, a organização lançou a meta de convencer pelo menos dez países, até 2015, a adoptarem a pegada ecológica como guia para as suas políticas de desenvolvimento.
Já há alguns resultados, sobretudo na Suíça, que está a adoptar a pegada como indicador básico de sustentabilidade. Outros países europeus, como Alemanha, Áustria, França, Finlândia, Bélgica, Escócia e País de Gales, estão a rever a sua contabilidade ecológica ou a lançar iniciativas relacionadas com a pegada. Também o Canadá, Equador e os Emirados Árabes Unidos estão a trabalhar com a Global Footprint Network. "Adoraríamos trabalhar com Portugal", afirma Mathis Wackernagel.
Na entrega do Prémio Internacional Gulbenkian, hoje, Wackernagel não estará presente e será representado por um dirigente europeu da organização. Mas se viesse a Lisboa, acrescentaria mais alguns metros quadrados à sua enorme pegada ecológica individual - que é composta maioritariamente pelo peso de muitas viagens aéreas.
"Eu vou de bicicleta para o trabalho, compro alimentos produzidos localmente, tento não adquirir produtos em excesso, compenso as emissões das minhas viagens. Mas, honestamente, comparado com o resto do mundo, estou no topo da escala em termos de acesso a recursos", admite. "A minha pegada representa seis a sete planetas."
Wackernagel diz, porém, que não é a atitude individual o que mais importa. "Temos um problema colectivo e estamos a fazer o máximo que podemos para fazer com que as nações percebam que [a pegada ecológica] é do seu próprio interesse."
Ainda assim, quando se lhe pergunta o que faz em relação à sua própria pegada, Wackernagel responde: "Choro."
Calcular a pegada ecológica envolve contabilizar diferentes tipos de áreas. Por exemplo, aquela que é coberta por pastos e campos agrícolas, a ocupada por florestas que fornecem lenha, madeiras e matéria-prima para o papel, a necessária para as pescas, a tomada pelas cidades. A maior fatia, porém, é a da pegada carbónica, ou seja, a área teoricamente necessária para absorver o dióxido de carbono emitido pelo uso dos combustíveis fósseis, como o petróleo e o carvão. Metade da pegada ecológica mundial deriva das emissões de carbono.
Em 2003, no cômputo geral, a população mundial necessitava de serviços ecológicos que representavam 14.100 milhões de hectares globais. Mas a Terra só tinha 11.200 milhões de hectares capazes de produzir indefinidamente aqueles serviços. Desde o final da década de 1980 que o planeta está em défice.
O conceito de pegada ecológica foi adoptado pela organização ambientalista internacional WWF, que o divulga bianualmente no seu Relatório Planeta Vivo.