Torne-se perito

Afeganistão. Nascer e morrer em Kandahar

No Sul do Afeganistão, quase todas as mulheres têm os filhos em casa. A maioria nunca viu um médico. Muitas morrem antes de serem vistas por um homem. Há muitos bebés com malformações fatais. Cada mãe perde em média dois filhos. O país está no fim do mundo em saúde materna e infantil. Com os feridos de guerra, esta é uma prioridade no Hospital de Mirwaiz. Uma série de reportagens no Afeganistão.

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Sari vem da Europa e isto é Kandahar. "Aqui vejo coisas que só conhecia dos livros." Mães que andaram anos com o útero de fora. Todas as semanas bebés com espinha bífida. Todos os dias bebés que já morreram. "A maior parte das mulheres tem os filhos em casa e vem ter connosco muito tarde, com os filhos mortos." Coisas que atiram o Afeganistão para o fim do mundo.

Mortalidade materna? Pior só na Serra Leoa.

Em Kandahar estão uns 40 graus à sombra. A finlandesa Sari puxa o lenço do pescoço e cobre o cabelo porque chegou a hora de voltar ao hospital. Continua a parecer uma nórdica demasiado loura e robusta para parecer afegã. Mas, escada acima, escada abaixo, e sem ar condicionado, não deixará descair o lenço até ao fim do dia.

E o mesmo faz a outra nórdica das redondezas, Turid, uma norueguesa miúda, ruiva e sardenta.

Sari Silventoinen é médica obstetra, Turid Andreassen é enfermeira pediátrica e ambas integram a equipa do Comité Internacional da Cruz Vermelha em Kandahar. Vieram, como todos os dias, almoçar à delegação e agora vão regressar ao hospital que, além de servir a cidade, serve todo o Sul, três milhões de pessoas.

O Hospital de Mirwaiz é o eixo da vida e morte nesta parte do Afeganistão disputada ao governo e aliados estrangeiros em combates reacesos no começo do Verão.

Primeiro os taliban tomaram de assalto a prisão de Kandahar, libertando centenas de militantes e prisioneiros. Depois ocuparam aldeias no vale fértil de Arghandab, um pouco a norte. As tropas afegãs e canadianas foram reforçadas.

Agora o ar está tenso como um balão.

Até na Cruz Vermelha, onde 15 internacionais vivem e trabalham, entre 130 afegãos. Há pequenos jardins floridos, livros, piscina e barbecue, mas também há barricadas de sacos de areia, rede anti-granadas e bunker subterrâneo.

Dois anos depois do derrube dos taliban, um dos sinais de que tudo podia rebentar no Afeganistão foi o assassinato deliberado de um membro da Cruz Vermelha, o engenheiro suíço-salvadorenho Ricardo Munguia, em 2003, pelos taliban.

O Comité Internacional da Cruz Vermelha não é a ONU. Não representa partes, não envia tropas. Tem um mandato de neutralidade perante todos num conflito. E o Afeganistão representa uma das suas maiores operações humanitárias.

A morte de Ricardo foi assim alarmante. Se a Cruz Vermelha estava a ser atacada, toda a gente podia ser atacada. Os Médicos sem Fronteiras, com décadas de trabalho local, abandonaram o Afeganistão depois de membros seus serem mortos. Outras organizações concentraram pessoal internacional em Cabul.

A Cruz Vermelha manteve as delegações, incluindo projectos de longo prazo como o apoio ao Hospital de Mirwaiz, e até reforçou a equipa de internacionais. Mas, à semelhança de todas as organizações no Afeganistão, estabeleceu regras de movimento.

Em Kandahar, a cidade onde Ricardo foi morto, os membros internacionais têm recolher obrigatório às seis da tarde, andam sempre com walkie-talkies, nunca vão a pé na rua e mesmo que só tenha de sair uma pessoa saem pelo menos duas carrinhas com bandeira, rádio e intérpretes, além dos condutores.

É por isso que Sari e Turid agora sobem para a carrinha da frente, acompanhadas por um fantasma azul. É a tradutora-parteira Shaqiba, que acaba de cobrir a risonha cara de lua-cheia com a burqa que todas as médicas, enfermeiras e parteiras afegãs usam, até em zonas do hospital.

Mirwaiz fica a 50 metros, "não, 87!", corrige Turid, mas sempre que alguém lá vai é esta operação rodoviária. Na carrinha de trás segue Arthur Aseka, o queniano especialista em gestão hospitalar que a Cruz Vermelha contratou para este projecto. Quando um grupo misto tem que ser transportado, as mulheres vão num carro e os homens noutro.

O Afeganistão é um país altamente protocolar. Há todo um código com consequências diplomáticas. A separação de homens e mulheres representa um sinal de não-afronta a esse código.

Para além disso, permite às afegãs que trabalham com a Cruz Vermelha não serem acusadas de se misturarem com homens. Torna-se socialmente mais aceitável para as famílias deixá-las trabalhar.

A lupa no mapa

É a mesma lógica de um dos investimentos em curso, a construção de um bloco operatório para mulheres. "Não é possível fazer um hospital, mas ter um bloco já é um passo, e é algo que toda a sociedade quer", resume Christophe Menu, o chefe da Cruz Vermelha em Kandahar.

Se o objectivo é que mais mulheres sejam assistidas, em vez de lutar para que elas sejam assistidas entre homens e por homens - e ter a população contra -, luta-se para que sejam assistidas entre mulheres e por mulheres - e tem-se a população a favor.

E em menos tempo do que leva a explicar isto já as duas carrinhas da Cruz Vermelha estacionam no hospital.

Da maternidade à morgue, Mirwaiz é um circuito humano completo. Põe-se como uma lupa no mapa e vê-se o Afeganistão.

As mulheres nómadas no jardim a darem sumos de pacote a recém-nascidos. Os homens sem perna, com uma perna das calças de balão presa na cintura. Os velhos grisalhos de turbante parados como ascetas. As mães de bebé e biberão e mão na burqa para que não levante com o vento. O menino inteiramente nu, inteiramente queimado, que vem pelo próprio pé.

Os edifícios estão espalhados entre pinheiros, mato e jardins, e pelos caminhos vai e vem gente, cadeiras de rodas, riquexós, bicicletas, motoretas, carros.

Arthur, o queniano, dá uma volta rápida.

A farmácia - com os medicamentos fornecidos pela Cruz Vermelha, que tenta combater os desvios e eliminar a corrupção dos médicos que prescrevem medicamentos fora da lista e mandam os doentes a farmácias cúmplices no bazar.

A lavandaria - com mulheres de lenços e roupas coloridas, descalças nos tapetes, a bebericar chá entre pilhas de lençóis verdes e batas de hospital.

A cozinha e o refeitório - com três gerações masculinas, um velho, um homem, um menino, entre tachos gigantes e mesas ainda com restos de comida.

A mesquita - com muitos sapatos à porta e muita gente deitada lá dentro, a dormir ou a salvo do calor.

E a morgue - com seis frigoríficos para as mulheres e nove para os homens porque "a shura diz que até na morte os corpos têm que estar separados" e a shura de Kandahar é uma assembleia de 21 eminentes, incluindo quatro mulheres, que, "se houver um problema de disciplina no hospital, pode pressionar a comunidade".

No caminho, duas mulheres de burqa cumprimentam Arthur em inglês. Ele fica confundido. Pergunta-lhes quem são. São duas parteiras que ele conhece. Mas como reconhecê-las assim? "Se for ao departamento delas, convidam-me para um chá sem burqas, mas aqui os homens olham."

E lá está o letreiro com uma cruz por cima da metralhadora a dizer "No weapons", à porta do edifício principal.

Arthur cumprimenta e recebe as tradicionais fórmulas de cortesia afegãs, longos se-deus-quiser, de mão no peito.

No interior, velhos em cadeiras de rodas com barbas ruivas de henna. Homens descalços, de pernas flectidas num banco. Meninas ainda de lenço que já parecem adolescentes melancólicas. Mulheres de burqa com crianças e bebés no chão. Bebés a gritar com os olhos pintados de preto. Bebés embrulhados como múmias com os olhos pintados de preto. Bebés todos iguais a pequenos tutankhamons esborratados. Uma instituição, khol nos bebés, henna nos velhos.

Há macas com tinta estalada nos corredores e patamares sujos, com restos de lixo. Um homem cospe para o chão junto à ala onde estão feridos do assalto taliban à prisão.

Essas explosões partiram muitos vidros em Kandahar, incluindo os da Unidade de Cuidados Intensivos, que continuam partidos. Aqui cabem 20 camas e numa delas está Abdelkhaled, que veio de Helmand, província aqui ao lado, de vasto cultivo de droga, bastiões taliban e intenso confronto.

É um belo rapaz, com uma intensidade de jovem messias, cabelos negros revoltos, dedos muito longos pousados sobre o penso. Tem o abdómen cheio de estilhaços, explica Said, o simpátio enfermeiro, barbudo como um mullah.

Abdelkhaled diz que é agricultor e estava a trabalhar na terra, há uma semana. "Veio um avião e bombardeou." Isto passou-se na zona de Musa Qala, palco de grandes batalhas entre os soldados britânicos e os taliban. Com o abdómen rebentado, Abdelkhaled viajou durante dois dias, em vários carros, até Kandahar. Chegou ao hospital na noite em que os taliban atacaram a prisão.

No meio destas 20 camas de um hospital do governo não há condições para lhe perguntar, através de tradutor, se a sua aldeia apoia os taliban e qual é a sua própria posição.

Muitos feridos taliban vão para o Paquistão, mas alguns vêm aqui ter. A posição da Cruz Vermelha é que todos os feridos sejam assistidos e tem encontrado formas de taliban serem tratados neste hospital.
De resto, quando não passam a fronteira, é para Mirwaiz que convergem feridos e mortos de todo o Sul, o que leva a frequentes situações de emergência.

As vítimas de guerra são uma das grandes prioridades, diz a directora, Sharifa Sedeliqi, 39 anos, cirurgiã de Cabul que ainda se está a tentar habituar à burqa sempre que sai.

E além das doenças sazonais - "no Inverno, gripe, pneumonia, meningite; no Verão, diarreia e por vezes cólera" -, a outra grande prioridade são "problemas ginecológicos e infantis".

Sharifa cita um dos números de saúde materna que fazem do Afeganistão o fim do mundo. "Em Kandahar, por cada 100 mil partos morrem 2000 mulheres." Em Portugal morrem cinco.

Burqa à mão

Na manhã seguinte, sempre de lenço preto na cabeça, Sari está a apalpar uma barriga de cesariana. A paciente contorce-se de dor, mas a situação é boa, diz-lhe a obstetra, e a parteira Shaqiba traduz, com a burqa levantada sobre a testa, porque nesta zona não há homens.

As burqas estão sempre à mão. A da mulher que fez cesariana, por exemplo, está meio enrolada na cama. Mais à mão só o recém-nascido, todo enfaixado e com um laçarote, no seu berço de tinta lascada.

Na cama seguinte, senta-se uma velhinha mínima, de tornozelos muito finos, muito bem disposta. "Estou a ensinar a equipa a fazer operações vaginais", explica Sari, pondo a mão no ombro da paciente. "E o resultado é este, ela está sentada e vai para casa amanhã."

A velhinha chama-se Bibi e tem 60 anos. "Quando a esperança de vida de uma mulher no Afeganistão é 42", lembra Sari. Porque é que foi operada? "Porque tinha o útero de fora. Andava assim há 15 anos e só agora veio ao hospital." Quantos filhos? Bibi responde, através de Shaqiba: "12".

A caminho da obstetrícia, é preciso passar por patamares com homens. Shaqiba tapa a cabeça com a burqa e segue à frente de Sari. Nas escadas estão uma avó, uma mãe e uma bebé deitada no chão, aos gritos.

Aberta e fechada uma cortina, os corredores voltam a só ter mulheres e Shaqiba atira a burqa para trás da cabeça. Sari apresenta uma médica afegã, Gul Bibi, burqa dobrada no braço como um casaco. E depois outra, Fatima, que tira a burqa a rir. "Não gosto disto, sou de Cabul!"

Kandahar não é Cabul, onde há muitas mulheres de rosto descoberto em lugares mistos.

Num pequeno quarto sombrio, uma rapariga sozinha deitada de lado olha para a parede, palma das mãos pintada de henna e um pulso cheio de pulseiras.

Chama-se Zallaja, tem 25 anos e é de Kandahar. "Teve dois filhos em casa e este segundo parto deve ter sido muito difícil porque o músculo entre a vagina e o recto rompeu e ela ficou com problemas nos intestinos", conta Sari.

"Isto já foi há meses, mas o marido não a deixou vir ao hospital mais cedo. Este país está cheio de mulheres como esta. Não as deixam vir. Há três semanas vi uma mulher com um buraco no recto, e ela vinha em segredo."

Shaqiba pergunta a Zallaja se quer falar e ela acena que sim. Porque não veio antes ao hospital? "Ninguém nos ajuda e eu não tinha dinheiro para o transporte. Foi a minha mãe que me trouxe. O meu marido disse que eu não podia mostrar o corpo a um médico homem."

"É o grande problema", diz Sari. "Se elas precisam de uma operação, o anestesista é homem, o cirurgião é homem, os enfermeiros do bloco operatório são todos homens. Há mulheres que precisam de operações e desaparecem daqui."

No Afeganistão, 81 por cento dos partos acontecem em casa e a maior parte das mulheres não tem acesso a qualquer acompanhamento. E num país em que apenas 14 por cento das mulheres são letradas, e a cultura prevalecente faz com que estas matérias não sejam faladas, a maioria não sabe sequer identificar problemas. Segundo um estudo citado pela organização Save the Children, mais de um terço das mortes maternas são por hemorragia e a maior parte das mulheres não sabe sequer que sangrar na gravidez é muitas vezes sinal de perigo.

Sem anestesia

Mais à frente, num quarto com várias camas, há mulheres a gemer com contracções. "Imagine uma mulher ocidental assim", propõe Sari. "Aqui os partos são feitos sem qualquer anestesia, sem epidural, nada."

Na porta seguinte, a casa de banho tem um chão de ladrilhos imundo. "E quando cheguei não havia água corrente."

Ainda não há ar condicionado na maior parte do hospital. As janelas estão abertas e as testas transpiradas.

Noutro quarto, várias avós pegam em bebés enquanto as mães recuperam. Os bebés têm todos khol nos olhos. "É para ter olhos bonitos no futuro", diz uma avó.

Mesmo que não haja futuro.

Sari destapa um bebé que está num berço, com restos de cocó seco nas nádegas e os olhos esborratados. Chora e com razão. Nas costas tem uma bossa de carne em ferida. Sari toca em redor. "Espinha bífida. Acho que não vai sobreviver."

Esta grave deformação ocorre nas primeiras semanas de gestação. Quando não leva à morte, o risco de paralisia é muito elevado. Nos países desenvolvidos "é facilmente detectável em qualquer ecografia e na quase totalidade dos casos é alvo de interrupção voluntária da gravidez", resume o obstetra Miguel Oliveira da Silva, do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, contactado mais tarde pelo P2.

No Afeganistão, mesmo que a deformação seja detectada "não há interrupção da gravidez", diz Sari. "Só se a mãe estiver à beira de morrer é que a família pode aceitar. Se se soubesse que a Cruz Vermelha fazia interrupções seria muito complicado continuar a trabalhar aqui."

E isto não são casos excepcionais.

"Há muitos bebés assim, numa base semanal ou mais", acrescenta Sari. "Bebés com graves anomalias, talvez porque as mães tomem medicamentos que não se podem usar em grávidas. E há muitos casamentos entre parentes."

Aos quatro dias de vida, além de ter os olhos pintados, o bebé chama-se Khatai, e está rodeado de várias mulheres da família. Nem a mãe, deitada na cama, nem as mais velhas exprimem algo de dramático.

Não choram - aqui, são as estrangeiras que choram, mesmo Sari, após seis meses de Mirwaiz.

Também não fazem perguntas a Sari.

Entre os muitos números impressionantes da saúde materna no Afeganistão há este: cada mulher perde em média, no seu tempo de vida, dois filhos.

Isto para uma taxa de fertilidade que ultrapassa os sete filhos por mulher.

Uma das causas de morte é tétano, prevenível com uma vacina, e a mortalidade infantil foi até há pouco tempo a mais alta do mundo, a par da Serra Leoa. Morriam 165 crianças por cada 1000. Só no ano passado foi anunciada uma melhoria, para 135.

Mas o Afeganistão continua nos fundos estatísticos.

Também pela idade em que as mulheres começam a ter filhos, antes de estarem amadurecidas.

Neste mesmo quarto onde o bebé Khatai chora, um bebé muito saudável repousa nos braços de uma menina chamada Gulalei, vestida de cor-de-rosa. "Tem 14 anos, e este é o segundo filho." O primeiro nasceu aos 13, e ela casou-se aos 12. É comum.

"Tanto o primeiro como o segundo naceram em casa, mas a placenta ficou lá dentro e tivemos que vir ao hospital tirá-la", responde a sogra em vez dela.

Como as mulheres se mudam para casa do marido, a sogra é quem manda no mundo feminino caseiro, e estes quartos estão cheios de avós-sogras a decidir coisas. Esta tem um perfil agudo e aperta a boca quando a tradutora volta a dirigir-se à rapariga, para perguntar por que teve os filhos em casa. "Era de noite e não tinha transporte, a minha sogra e a minha mãe ajudaram", diz ela, a sorrir.

No berço, o bebé fica a dormir em cima da burqa dela.

Parteira solteira

O centro de Kandahar amanheceu com tiroteio. No vale de Arghandab, as tropas afegãs combatem os taliban e os canadianos ajudam no céu e em terra. Quando os blindados americanos atravessam a cidade tudo pára e se desvia.

Em Mirwaiz as equipas de emergência tentam arranjar espaço para uma possível enchente, e o espaço que há é este, onde Sari agora tem as mãos na anca. "Querem pôr gente aqui? Mas como? Nem sequer há uma casa de banho!"

Aqui é o edifício do futuro bloco operatório para mulheres. Sari anda a ver as obras, quartos com paredes e chão partido ou cheios de equipamento empacotado, acabado de chegar de Genebra. Um estaleiro.

Hoje, além de Shaqiba, está outra parteira tradutora, Naseema. Usa óculos e ouve reparos por isso. Os óculos notam-se através da rede da burqa, pelo volume e pelo reflexo. Parece um fantasma ainda mais pungente. Depois levanta a burqa e aparece uma rapariga esperta a sorrir.

"As pessoas vêm ter comigo quando não conseguem ter filhos e eu digo que ambos têm de ir fazer os testes, mas alguns homens não querem, porque na nossa cultura não é bom saber-se que um homem não pode ter filhos. Se o problema é dela, ele casa-se com outra mulher. Se o problema é dele, continuam com o tratamento. Se tiverem dinheiro vão à Índia. Mas uma mulher não se pode separar do marido se o problema for dele."

A própria irmã dela não consegue engravidar, e o cunhado recusa-se a fazer testes.

Porque trabalha e continua solteira aos 36 anos, Naseema não é uma afegã comum. "Ainda não consegui uma pessoa simpática. Sempre trabalhei e quero continuar. Só casarei com quem concorde com isto. A maior parte dos homens não quer que as mulheres saiam de casa e trabalhem."

O pai de Naseema é pediatra e não é um problema para a família que ela trabalhe. "O problema é que eu trabalhe com uma organização internacional. Não é bom por causa da segurança." Ou seja, mesmo sendo a Cruz Vermelha pode ser um alvo.

Naseema também faz aconselhamento, incluindo como espaçar os bebés. A falta de espaçamento traz complicações e faz com que as mães parem de amamentar um filho quando engravidam de outro. "Usamos contraceptivos, injecções, pílula, preservativos... Mas as mulheres dizem que os homens deitam os preservativos fora."

Ela própria não desistiu de ter filhos, apesar de estar numa idade de avó afegã. "Queria ter dois, mas no máximo vou ter quatro." Porque quatro é o mínimo admissível. "E se uma mulher tem só filhas, o marido pode casar-se outra vez para ter um filho."

Educada em Cabul e formada como parteira em Peshawar (Paquistão), Naseema nem sabia usar a burqa quando chegou a Kandahar, e há muita coisa a que não estava habituada.

"Conheci uma mulher que tinha a vagina muito aberta por causa dos partos e o marido dizia-lhe: 'A tua vagina é pior que a de uma burra.' Eu disse que ia cosê-la, mas ela nunca voltou. Nas zonas rurais a vida é muito dura, o que o homem diz tem de ser feito. E por causa da violência, nenhuma parteira, nenhuma médica lá vai. A maior parte das pessoas não traz as mulheres para o hospital. E é impossível uma mulher guiar carros, motas ou bicicletas em Kandahar."

Como é que Naseema vem trabalhar? "O meu irmão traz-me."

Mas nada disto faz dela uma revoltada. "Eu gosto do meu país. Gosto da cultura. Eu espero, eu rezo ao meu Deus para que nos traga paz." Do que é que ela gosta na cultura? "Do respeito pelos mais velhos. Se as pessoas o seguissem não havia mortes." Quanto às mulheres, sim, podia haver mudanças. "São muito mais respeitadas no Paquistão, que também é islâmico. Aqui, quando uma mulher anda na rua os homens falam, e não podemos responder porque isso quer dizer que não somos decentes. No Paquistão, se isso acontecer, as pessoas vêm e batem no homem."

Foi por escolha da família que Naseema se tornou parteira. "Para trabalhar com mulheres, porque há falta de mulheres e há quem prefira deixar morrer uma mulher a levá-la a um médico. Algumas mulheres nem para uma injecção num braço querem um homem. Vêm pedir-me que lhes dê injecções. E mesmo com mulheres não querem tirar as calças para uma injecção."

É verdade que num hammam (banho público tradicional) há afegãs que se despem, mas não aqui. "A minha família não me deixa ir ao hammam. Os pashtum não gostam que as mulheres vão aos hammam. Há uma cultura da vergonha."

O pai de Naseema trabalhou no Paquistão até ao derrube dos taliban e depois voltou com os seus pacientes, quando eles deixaram de estar refugiados, mas ganha muito pouco em Kandahar. Um dos irmãos dela não passa dos 60 ou 70 dólares por mês num comércio. O salário dela são 400. Não se casou e hoje é a única com salário fixo numa casa de 10 pessoas.

Shaqiba, a parteira com cara de lua-cheia, também é quem sustenta a casa, mas a história dela é muito diferente. Casou-se tão nova que aos 27 anos já tem um filho de 13. Só viveu quatro meses de casada. "O meu marido morreu durante a guerra civil, quando os mujaheddin atacaram Cabul." Mais concretamente, Gulbuddin Hekmatyar, um dos vários senhores da guerra que ainda mexe na era Karzai. Agora Shaqiba vive com o filho e com o pai, viúva.

Ninguém imagina isto, porque ela está sempre a sorrir, e sorri mesmo quando diz, de repente: "Queria tanto ir embora, para qualquer lado, para qualquer lado. É muito difícil para as mulheres afegãs, sobretudo viúvas. Se alguém me desse a mão eu ia."

A grande falta

Sari aprova o estado das obras do bloco operatório: "Vai ficar um belo bloco, 18 camas, com possibilidades de expandir." Faltam coisas básicas como ligações eléctricas. "É difícil encontrar engenheiros que queiram vir a Kandahar, por razões de segurança", explica Sari. "Mas quando isto estiver aberto, as mulheres vão aceitar muito mais tratamentos."

Ela não verá o resultado, ajudou a construí-lo.

Pode ser uma escolha de vida. Turid, a norueguesa ruiva e miúda, trabalhou muito tempo como enfermeira no seu país e depois decidiu mudar para a Cruz Vermelha. Agora, aos 49 anos, vai na terceira missão internacional, incluindo Sudão, de onde reconhece coisas. "As crianças aqui também não choram e passam pelo mesmo. A coragem é como em África, e também tomam conta dos bebés uns dos outros."

Mas aqui "a higiene é pior", e há outra coisa que a impressiona: "Não dão de mamar em público. A criança chega com diarreia, eu pergunto pela amamentação e a mãe mostra aquele leite horrível do bazar. Aqui, as nómadas kuchi dão de mamar, e as pessoas do campo também, mas na cidade parece que não é natural. Em África a avó mostraria à filha o que fazer, vem da tradição. Aqui, não. Também pode ter a ver com a roupa. E são surpreendentemente ignorantes quanto a ter leite, não bebem o suficiente, comem as coisas erradas. E há tantas crianças não vacinadas!"

Enquanto Turid fala, Sari tem os olhos vermelhos porque vai partir. "O meu trabalho aqui é formar pessoas, mas o que aprendi é espantoso. Também não é fácil para mim ver o que viu ontem, não estou habituada a ver espinha bífida."

Uma das últimas tarefas de Sari será escrever cartas com o caso do bebé Khatai para os pais levarem a hospitais de Cabul.

Vai voltar à Europa sem saber se ele sobreviveu.

Os nomes das médicas e parteiras afegãs foram alterados por razões de segurança.
Entre Cabul e Kandahar, o P2 viajou no avião do Comité Internacional da Cruz Vermelha.

 

Nota publicada a 10 de Setembro de 2021

A primeira vez que fiz reportagens entre afegãos como enviada deste jornal foi em 2001, nas semanas a seguir ao 11 de Setembro, no Paquistão, onde milhões então estavam refugiados. Recordo em especial as escolas e ateliers clandestinos mantidos pelas bravas mulheres da RAWA (Revolutionary Association of the Women of Afghanistan), com risco permanente de vida, à revelia dos taliban e dos seus apoiantes. A fronteira estava bloqueada, não consegui então atravessá-la para o lado afegão, mas o encontro com todas essas pessoas, o impacto do país que elas traziam, fez-me não desistir de ir lá. Durante anos juntei livros e o que pude sobre o Afeganistão. Em Maio-Junho de 2008 passei então um mês a viajar pelo o país, em reportagem para este jornal (e também para a Antena 1): Cabul, Herat, Jalalabad, Bamyian, Mazar-i-Sharif, Bagram, Kandahar. A reportagem que escolhi para ser republicada [na edição impressa pelos 20 anos do 11 de Setembro], a pedido do Público, é uma das várias em que ser repórter mulher fez diferença, porque um homem não teria acesso ao que vi neste hospital. Uma repórter estrangeira no Afeganistão tinha a vantagem de aceder tanto ao mundo dos homens (porque aí a condição de estrangeira se sobrepunha) como ao mundo das mulheres (porque aí a condição de mulher se sobrepunha). E um Afeganistão sem as mulheres será sempre um país metade às escuras.

Alexandra Lucas Coelho

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