A criação do mito Ingrid
A história de Ingrid Betancourt tem sido escrita por vários actores multilaterais com interesses próprios
Há cerca de 2500 anos, Dario I, rei da Pérsia, mandou gravar numa rocha no monte Behistun, no actual Irão, a história da sua ascensão ao poder. Foi o primeiro exemplo conhecido de propaganda política. Há cerca de uma semana os media transmitiram compulsivamente o resgate de Ingrid Betancourt. Poderá ter sido o exemplo mais recente.Quando foi capturada, Ingrid Betancourt era praticamente desconhecida na Europa. Ainda que candidata presidencial na Colômbia, Ingrid não tinha mais do que 2 por cento das intenções de voto até se tornar refém das FARC. Contudo, em seis anos tornou-se um ícone internacional da luta contra o grupo rebelde colombiano e o maior trunfo político de todos os intervenientes no conflito. Tal como a Inscrição de Behistun - em persa antigo, elamita e babilónico - também a história de Ingrid é escrita por vários actores interessados na criação do mito.
Uma visão consistente aponta para o papel da França. Ainda que ela só tenha obtido a cidadania francesa depois de se casar com o diplomata francês Fabrice Delloye, em 1983, o ex-presidente Jacques Chirac transformou a sua prisão em causa nacional e incumbiu o então ministro Dominique de Villepin de a resgatar. A escolha não foi fortuita. Enquanto estudante no Institut d'Études Politiques de Paris, Ingrid teve um caso amoroso com o então professor Villepin. É esta uma das principais teses do livro Ingrid Betancourt, Histoire de C\u0153ur ou Raison d'Etat?, de Jacques Thomet, ex-correspondente da AFP na Colômbia. Em 2003, Villepin planeou uma operação de resgate a partir da Amazónia brasileira, que terminou em fracasso. Há mais pontos de ligação. Em 2007, Jacques Chirac nomeou o diplomata francês Daniel Parfait como seu "interlocutor pessoal nas negociações com as FARC". Parfait é casado com Astrid Betancourt, irmã mais velha de Ingrid. Depois do resgate de Ingrid feito pelo Exército colombiano, Sarkozy foi expedito a recolher os dividendos da libertação.
Um outro interessado no mito Ingrid é o Presidente da Colômbia, Álvaro Uribe. Eleito em 2002 e impedido pela constituição de se candidatar a um terceiro mandato nas eleições de 2010, a libertação de Ingrid e os vários golpes militares sofridos pelas FARC nos últimos meses criaram condições para que o Presidente colombiano aspire a uma nova emenda constitucional que lhe permita uma segunda reeleição sem a necessidade de realização de um referendo. A União Europeia já sancionou essa ideia.
Também Ingrid já foi acusada de ter agido intencionalmente para alavancar as suas ambições políticas - visto ela saber que a zona de San Vicente del Caguán, onde foi raptada, era bastião das FARC. Foi o que fez novamente esta semana o famoso escritor colombiano Fernando Vallejo, autor da A Virgem dos Sicários durante uma palestra na VI Festa Literária Internacional de Paraty, no Brasil.
O Presidente George W. Bush, com a popularidade em baixo, também insiste em colher os louros. Com o sucesso do resgate conseguiu mitigar as críticas constantes ao plano americano de assistência militar à Colômbia, no valor de 700 milhões de dólares anuais, feitas por grupos de direitos humanos e pela oposição colombiana.
Após a queda do império persa e o desaparecimento da escrita cuneiforme, o significado da Inscrição de Behistun (hoje património da UNESCO) foi esquecido. Apesar do aproveitamento político, o mesmo poderá acontecer com Ingrid. Como disse Fernando Pessoa, "O mito é o nada que é tudo/O mesmo sol que abre os céus/É um mito brilhante e mudo". Doutor em Estudos de Paz e dos Conflitos pela Universidade de Gotemburgo. Investigador na Universidade da ONU