Quando nos sentámos com o realizador José Padilha num dos "foyers" do Berlinale Palast, em Fevereiro, numa roda de imprensa, a polémica estava instalada. Nessa manhã, a "Variety", revista da indústria americana, arrasava "Tropa de Elite" pela pena do crítico Jay Weissberg como "filme de recrutamento para 'hooligans' fascistas", e Ray Bennett, do "Hollywood Reporter", chamava-lhe "mal estruturado e por vezes incoerente". Claro que os jornalistas presentes, com o faro apurado para o sangue, não se coibiram de levantar o assunto. Nem Padilha, falando num inglês fluente com leve sotaque tropical, o quis evitar. "É preciso ter um conhecimento muito pobre do fascismo para dizer que o meu filme é fascista. O fascismo é um movimento politicamente organizado, com uma agenda para controlar o Estado, tentando impedir a liberdade de expressão. Lamento, mas não há nada disso no meu filme. O que há é um processo que gera corrupção e violência na polícia, que leva à morte de pessoas. E colocámos no filme muitas pistas que dão a entender que não concordamos com a ideologia do BOPE", o Batalhão de Operações Especiais da polícia militar do Rio de Janeiro. Ou, como diz com uma gargalhada: "Para os críticos alemães, somos inteligentes e analisamos o processo que gera a violência; para os críticos americanos, somos fascistas..."
Poucos dias depois, para surpresa de todos, "Tropa de Elite" ganhava o Urso de Ouro atribuído pelo júri presidido pelo cineasta franco-grego Costa-Gavras. Jonathan Romney. outra vez, na "Sight & Sound": "É evidente por que é que o júri favoreceu 'Tropa de Elite': era um dos poucos filmes a concurso que podia dar azo a discussões."
Os incorruptíveis contra a drogaEssas discussões não se restringiram a Berlim, mesmo que tenham ganho outra dimensão a partir da estreia internacional do filme: "Tropa de Elite" já vinha com o gás todo do Brasil. A rodagem na favela do Morro da Mangueira não foi isenta de problemas: "raptaram cinco elementos da equipa e levaram a camioneta que tinha as armas falsas. Não foi um rapto por dinheiro, eles queriam mesmo era as armas e uma hora depois libertaram a equipa", o que obrigou à interrupção das rodagens por uma semana.
Depois, antes de chegar às salas, já era o filme mais visto de sempre no Brasil - a partir de um DVD roubado à produção três meses antes da estreia em Outubro, o filme circulou em cópias piratas por onze milhões e meio de espectadores. "E na verdade não foi apenas pirataria - houve até cinemas piratas montados para mostrar o filme, com um televisor ligado a um DVD", ri-se José Padilha. "Cada espectador pagava três reais [um euro e meio] para ver o filme e eles faziam dez sessões por dia.
Apesar disso, fomos o filme mais visto no Brasil em salas no ano passado. Tivemos dois milhões e meio de pessoas nos cinemas e estamos a vender muitos DVD, penso que por causa dos extras. E os clubes de vídeo não podem realmente alugar uma cópia pirata - quer dizer, por acaso podem, porque o fizeram!"
Tudo isto por causa de um filme estruturado como uma fita de acção à americana, acompanhando o quotidiano do BOPE. Uma elite de polícias incorruptíveis treinados como comandos militares, que vestem de negro e cujo símbolo é uma caveira, nas linhas da frente do combate contra os traficantes de droga que controlam as favelas e contra os polícias "regulares" corruptos em conluio com os traficantes, que não hesitam em torturar, em matar. De certa maneira, gente que se considera acima da lei.
Não surpreende que "Tropa de Elite" seja acusado de glorificar a violência. Mas não é assim que Padilha vê. "Olhe para um polícia regular do Rio: ganha uma miséria por mês, não recebe treino, tem uma arma, está rodeado por gente corrupta, mandam-no combater os traficantes armados até aos dentes nas favelas... O resultado vai forçosamente ser a corrupção. Agora olhe para os polícias do Bope: é preciso uma ideologia completamente louca para sobreviver numa instituição corrupta sem aceitar suborno. Eles têm de acreditar que são mais fortes que os outros, que são donos da verdade, que podem torturar. Caso contrário são apenas mais polícias corruptos. O filme é uma tentativa de ver a realidade pelos olhos de um polícia".
Preparados para a guerraEsse polícia é o capitão Nascimento, oficial à beira do esgotamento, personagem que "está a perceber que aquilo que faz não resolve nada. Consegue imaginar empenhar a sua vida inteira num emprego e chegar à conclusão que não serviu de nada?" Quem o diz é o actor Wagner Moura, que conhecemos de novelas da Globo como "Paraíso Tropical" e que, para encarnar Nascimento, passou pelo intenso treino militar dos verdadeiros Bope. "Um treino fisicamente e mentalmente muito duro, de loucos. Mas, uma vez lá, esqueci-me que era actor e só queria provar que era capaz de conseguir a caveira. Houve actores que abandonaram o treino. Eu não, achei que era importante para o filme. Passei três meses com antigos polícias e posso dizer que são boa gente, acreditam no que estão a fazer, que estão a proteger a sociedade dos bandidos. Mas tem de perceber que estamos a falar de polícia militar, que nasceu nos tempos em que o Brasil era governado por uma ditadura militar e continuou a existir depois da ditadura ter desaparecido. Não estão preparados para proteger: estão preparados para a guerra."
É esse o ponto que José Padilha sublinhará, invocando o seu primeiro filme, o documentário "Ônibus 174" (2002), sobre um caso real: um miúdo da rua que fez refém um autocarro do Rio. "Desconfio da ideia de podermos compreender processos sociais catalogando-os como de esquerda ou de direita. Com 'Ônibus 174', mostrei como o Estado trata mal os miúdos da rua, e fui considerado radical de esquerda. Com 'Tropa de Elite' perguntei por que é que o Estado produz polícias violentos. Passei a ser de direita. Uma das pistas que dei ao público brasileiro em como o filme não tinha uma inclinação política é o nome da personagem. No 'Ônibus 174' o miúdo que tomava o autocarro chamava-se Nascimento. E dei o mesmo nome à minha personagem para dizer às pessoas: tomem atenção, é o mesmo processo - só que agora visto do outro lado."
Dentro da corrupção
Padilha não hesita em dizer que muita da reacção inflamada ao filme nasce do que o cineasta brasileiro Carlos Diegues chama "patrulha ideológica" - "que implica que temos de discutir o filme pelos olhos dos outros e não pelo nosso. Existe muita hipocrisia no Brasil, e eu sei, porque sou de classe média. Se olhar para os números da violência no Brasil, ela é localizada: há onze assassínios por dia no Rio, mas todos em zonas pobres, têm todos a ver com polícias e traficantes. A classe média está mais segura que as classes mais pobres, e se a classe média sofresse na pele como as classes pobres sofrem, o problema da violência já tinha sido resolvido".
É isso que, para Wagner Moura, resume a importância de "Tropa de Elite": "O principal problema no Brasil é a violência. E para compreender a violência precisamos de compreender os traficantes de droga, as pessoas que moram nas favelas, a polícia... Claro que não acho que a solução para a violência seja matar gente nas favelas, mas é assim que as coisas são. A realidade, aliás, é muito pior do que aquilo que mostramos - 'Tropa de Elite' passa-se em 1997 e a situação de então para cá piorou muito. E era isso que queríamos fazer: mostrar a realidade, para as pessoas perceberem como é e discutirem a questão. Nunca se viu no Brasil um filme tão discutido como este, pode talvez ser um primeiro passo para mudar as coisas."
O realizador reforça essa ideia. "As pessoas nunca tinham visto a realidade assim no cinema, nunca tinham visto polícias a torturar e a matar gente nas favelas porque os documentários não mostram isso." (Convém explicar: a primeira ideia de Padilha foi rodar um documentário sobre o BOPE, ideia que caiu por terra quando percebeu que dificilmente conseguiria ter polícias a dar a cara, desviando-se então para uma ficção inspirada em episódios reais que contou com a colaboração no guião de antigos elementos do batalhão, como um ex-capitão do BOPE, Rodrigo Pimentel, que escreveu em parceria com o sociólogo Luis Eduardo Soares o livro "Elite da Tropa") "Não sei rodar um filme de ficção e por isso rodei um documentário, não dei guiões acabados aos actores, deixei-os à vontade para improvisar. Desde o princípio que queria que as pessoas percebessem que o filme é sobre o absurdo da violência. Olhei para toda a história do BOPE à procura da operação mais absurda em que estiveram envolvidos e claro que teve de ser a operação do Papa" - "Tropa de Elite" decorre antes da visita de João Paulo II ao Rio em 1997 - "com a polícia a matar gente e a limpar a favela antes da chegada do Papa. Há várias coisas no filme que penso que mostram que estamos contra o BOPE: a operação, Nascimento não conseguir manter a família unida, o facto de o filme terminar com um oficial que dispara sobre o público..."
Mas, mesmo que "Tropa de Elite" seja pensado como uma crítica de um sistema corrupto, é também um filme feito dentro dessa corrupção... Wagner Moura: "que o sistema está avariado, estamos perto do caos, mas para viver no Rio é preciso ter de trabalhar com o sistema de algum modo. Não se pode fazer nada na favela sem falar com os traficantes". Padilha: "Toda a gente o faz - [os realizadores] Fernando Meirelles, Walter Salles, eu, os jornalistas da CNN, toda a gente tem de chegar a um acordo, caso contrário não conseguimos filmar lá". Moura: "Consegue imaginar-nos a rodar nas favelas, fardados, com traficantes de droga armados a meterem-se pelo meio e a dizer que não é nada assim?" Há medo, nessa situação? "Não tive medo nenhum. Não percebo porquê. Devia ter tido!".
Depois de rodar nas favelas, acusações de fascismo não são nada para José Padilha. E, algures nos EUA, os manos Weinstein (eles que eram da Miramax, e que co-financiaram o filme) estão a esfregar as mãos de contentamento, com a polémica (e o Urso de Ouro) a garantir que vai fazer maravilhas pelo terceiro filme-acontecimento do cinema brasileiro (dez anos depois de "Central do Brasil", de Walter Salles, e cinco depois de "Cidade de Deus", de Fernando Meirelles). Mas é a Wagner Moura que cabe a última palavra: "Parece-me estranha esta confusão entre o que o cineasta acha e o que as personagens acham. Nunca me pareceu que as pessoas achassem que Francis Ford Coppola pensa da mesma maneira que Michael Corleone..."