Contrafactos e os seus argumentos
A História Virtual é uma nova tendência na historiografia moderna. Pensa os acontecimentos usando o método do "E se...". Em reacção contra as escolas deterministas marxista e dos "Annales", o Contrafactualismo devolve a liberdade à História. Para se entender o que aconteceu, é preciso compreender que tudo poderia ter acontecido de outra maneira
a E se Jorge Sampaio não tivesse convidado Santana Lopes para formar Governo? Estávamos em 2004. O primeiro-ministro, Durão Barroso, decidira abandonar o Governo para aceitar o lugar de presidente da Comissão Europeia. O Presidente da República tinha de tomar uma decisão. As hipóteses eram três: dissolvia a Assembleia da República e convocava eleições antecipadas, nomeava um primeiro-ministro alternativo do PSD, garantindo a continuidade da maioria parlamentar, ou impunha um Governo de iniciativa presidencial, baseado numa coligação PS-PSD. Sampaio demorou a pensar. A decisão era muito difícil e ele não sabia o que fazer. Reuniu, pela primeira vez, todos os seus 40 conselheiros. Um a um, expuseram as suas opiniões e a unanimidade era quase total: entre os 40, 39 achavam que o Presidente devia dissolver a Assembleia.
Sampaio decidiu ao contrário: convidou Santana Lopes a formar Governo. Em consequência, Ferro Rodrigues, secretário-geral do PS, demitiu-se. Ferro considerava que o Presidente tinha a obrigação de convocar eleições, que tencionava ganhar. Ninguém sabia, então, como ninguém sabe hoje, se o PS liderado por Ferro Rodrigues ganharia as eleições naquela altura. O que aconteceu foi que Santana governou durante seis meses, após o que Sampaio, aproveitando um pretexto qualquer, o demitiu. As eleições que se seguiram deram a maioria absoluta ao PS, chefiado por José Sócrates. Mas o que teria acontecido se o Presidente tivesse optado por convocar logo as eleições? Tudo teria sido diferente? Em que situação estaríamos hoje?
A questão é levantada por Carlos Gaspar, professor da Universidade Lusíada, num seminário sobre História Virtual de Portugal realizado no Instituto de Ciências Sociais, em Lisboa, e coordenado por Rui Ramos e Fernando Martins. Gaspar, que, em 2004, era conselheiro de Jorge Sampaio, admite, com ironia, o seu desconforto em falar do tema. "É como pedir a um criminoso que fale do seu próprio crime", diz ele. "Pior ainda: pedir-lhe que imagine o que aconteceria se não o tivesse cometido." Mas é precisamente por isso que querem ouvi-lo. Por não ser um observador completamente inocente.
Se Sampaio tivesse decidido dissolver o Parlamento e convocar eleições, esse "contrafacto" teria tido uma consequência drástica, explica Carlos Gaspar. "E isto é absolutamente científico", acrescentará, com um sorriso. Havia dois precedentes: em 2001, António Guterres demitira-se do Governo antes do fim do mandato, o que levou à convocação de eleições antecipadas; em 1987, foi Cavaco Silva quem se demitiu, levando o Presidente, Mário Soares, a convocar eleições. Se Sampaio tivesse seguido, em 2004, o mesmo padrão, convocando eleições, isso implicaria, na prática, a constatação de que o poder de dissolver a Assembleia não pertence ao Presidente, mas ao primeiro-ministro. Significaria, explica Gaspar, que um primeiro-ministro pode, em qualquer momento, quando o deseje ou lhe convenha, convocar eleições antecipadas. Basta-lhe, para isso, demitir-se. Isto configuraria uma espécie de "presidencialismo" do primeiro-ministro, que tornaria desnecessária e obsoleta a eleição por sufrágio directo e universal do Presidente da República.
O PS e o PSD, juntos, não perderiam a oportunidade para, com os seus dois terços no Parlamento, pedirem a revisão da Constituição. O Presidente passaria a ser eleito pelos deputados, o regime assumiria formalmente o seu carácter parlamentarista e a maioria proporia para Belém um dos candidatos históricos do "bloco central" - Mário Soares, Cavaco Silva ou António Guterres.
Tomando a decisão que tomou, Sampaio salvou, portanto, o regime semipresidencialista. A assistência, na sala polivalente do ICS, formada quase exclusivamente por professores e investigadores, está excitada pelas hipóteses teóricas levantadas.
Por trás dos factos
"E se Santana Lopes não tivesse aceitado o convite?", pergunta um. E estaria Cavaco disposto a aceitar esse novo regime de eleição, ele que, nessa altura, já estava a preparar a sua campanha? Alguém refere o livro que Santana Lopes escreveu, e que contém pistas úteis ao "historiador virtual". A seguir, alguém discute as motivações de Sampaio, e se terá sido mais decisiva a sua vontade de garantir a sobrevivência futura das prerrogativas presidenciais, ou de promover o seu prestígio pessoal no final do mandato, ou de assegurar a vitória do PS nas eleições seguintes.
E a discussão começa a girar em torno das razões e condições por trás dos factos, esquecendo a construção de cenários fictícios a partir dos "contrafactos". Isso já aconteceu no debate anterior, submetido ao mote O que teria acontecido se Cunhal não tivesse recuado em Novembro de 1975? Maria Inácia Rezola e António Reis, do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, falaram da possibilidade, que esteve iminente, da formação de uma "Comuna de Lisboa", da divisão do país em dois e de uma guerra civil. Jaime Nogueira Pinto, do Instituto de Ciências Sociais e Políticas, imaginou um regime de direita em 1975, e a hipótese de ilegalização do Partido Comunista e do advento de uma "independência branca" em Angola.
Em todas estas discussões, falou-se mais do que aconteceu, e porquê, do que aquilo que teria acontecido no futuro, caso os factos tivessem sido outros. O mesmo ocorreu nas exposições e debates anteriores, que incluíram temas como Para onde teria ido a economia portuguesa se não tivesse havido o 25 de Abril ou O que teria acontecido se Portugal não tivesse aderido ao Euro? ou O que é que teria acontecido se a monarquia tivesse sido restaurada em 1951? ou O que é que teria acontecido se Oliveira Salazar tivesse morrido no atentado de Julho de 1937? ou O que é que teria acontecido se o rei D. Carlos não tivesse sido assassinado em 1908?
Hipóteses verosímeis
A História Virtual, ou História Contrafactual, tornou-se uma moda desde que, em 1997, Niall Fergusson escreveu a sua História Virtual (Tinta da China). O livro, que explora possibilidades como a de Hitler ter ganho a guerra, ou a de o nazismo nunca ter tomado o poder na Alemanha, caso o Império Germânico tivesse triunfado em 1918, foi um bestseller. Mas os historiadores já há muito que faziam experiências de "contrafactualismo". Ao contrário da História Alternativa, que constrói ficções a partir de factos históricos que tivessem ocorrido de outra maneira, a História Contrafactual pretende explorar as possibilidades verosímeis em cada momento histórico, mostrando que não há uma única forma, necessária, de as coisas acontecerem.
"Só jogamos com cenários plausíveis", explica ao P2 Maria Inácia Rezola. "Na maior parte dos casos, trabalhamos com possibilidades que os próprios protagonistas da acção, na época, imaginaram." Ou seja, o exercício da História Contrafactual é, muitas vezes, entrar na mente dos actores históricos, para perceber o que eles pensaram fazer, e porque tomaram as decisões que tomaram. É um exercício que "serve para comprender as causas, e para termos uma noção da importância relativa dos vários elementos", acrescenta António Reis. "As principais críticas em relação à História Contrafactual partem de uma posição conservadora, uma concepção determinista da História."
A História Virtual, e esse foi o objectivo de Niall Fergusson, pretende devolver o protagonismo aos indivíduos. Ao contrário da historiografia marxista, cuja visão "científica" postulava um único caminho possível para a espécie humana, ou mesmo da Nova História, herdeira da historiografia dos "Annales" (movimento que surgiu em 1929 à volta da Revue des Annales e que privilegia uma história de longa duração, centrada na geografia e nos aspectos económico-sociais, por contraste com a abordagem tradicional, mais voltada para os factos políticos), a História Contrafactual volta a olhar para factores como o acaso, a contingência e o livre arbítrio. A Nova História, de Marc Bloch a George Duby, privilegiava as forças estruturais, os fenómenos da longa duração, como a economia ou a mentalidade.
O Contrafactualismo, sem rejeitar as aquisições dessa escola, acrescenta-lhes o indivíduo. Em cada momento, cada actor está, é certo, condicionado, mas não é um perfeito joguete de forças desmesuradas, que não entende. Há uma margem de liberdade na História. As coisas podiam ter acontecido de outra forma.
"O Contrafactualismo enfatiza o papel do livre arbítrio e do indivíduo na História, mas mostra também os limites do indivíduo", explica o britânico Nigel Townson, professor na Universidade Complutense de Madrid, que foi convidado para a conferência do ICS por ter escrito uma História Virtual de Espanha. "Muitos dos acontecimentos que analisei teriam, a longo prazo, tido o mesmo desfecho, mesmo se alguns factos tivessem ocorrido de outra maneira", continua Townson. "Em cada momento, havia muitas opções, e compreender isso ajuda a desmontar alguns dos mitos da História Moderna."
Townson lembra que o Contrafactualismo é um método de pensamento que sempre foi usado pelos historiadores, é usado todos os dias na nossa vida pessoal, e tem cada vez mais a ver com os raciocínios das ciências ditas exactas. "As ciências estão a mudar. Já ninguém leva a sério o determinismo que predominava no século XIX. Desde a Física Quântica e o Princípio da Incerteza de Eisenberg, as ciências exactas pensam hoje em termos de probabilidades. O Contrafactualismo recupera a imprevisibilidade na História."
O livro de Nigel Townson foi escrito sob inspiração do de Fergusson. Mas sob a inspiração do de Townson, a editora Tinta da China convidou os historiadores participantes no seminário História Virtual de Portugal a publicarem um livro. Deverá sair antes do Natal e incluir vários textos, redigidos para o seminário, sobre diferentes hipóteses de "O que teria acontecido se..." relativas à história portuguesa do século XX.
À semelhança do que aconteceu com a História Virtual de Espanha, espera-se que vários mitos da História de Portugal sejam derrubados. Um deles é o de que não é possível fazer nada, a não ser cumprir o Destino. O Contrafactualismo mostra que não é assim. A História ainda pode ser alterada.