Serei eu o guarda do meu irmão?

Em Israel, a solidariedade não é uma questão teórica ou abstracta. Todos sabem que "hoje és tu, mas amanhã posso ser eu"

Dois anos depois de terem sido raptados pelo Hezbollah, os soldados israelitas Ehud Goldwasser e Eldad Reguev voltam finalmente para casa. Provavelmente já mortos. O preço? Fundamentalmente, a libertação de Samir Kuntar, preso em Israel desde 1979 e condenado a quatro penas perpétuas pela morte da quase totalidade da família Haran e de dois polícias.Em 1979, Kuntar chefiou o grupo de terroristas que assaltou o apartamento de Danny Haran, no Norte de Israel, em Naharya. Fez reféns o próprio Danny, de 28 anos, e a filha Einat, de quatro, enquanto a mulher, Smadar, se conseguia esconder com a outra filha de dois anos, Yael. "Nunca esquecerei a alegria e o ódio nas suas vozes", escreveu ela mais tarde no Washington Post. "Eu sabia que se Yael gritasse, os terroristas lançariam uma granada e seríamos todos mortos, por isso tapei a boca da minha filha com a mão, esperando, apesar de tudo, que ela conseguisse respirar. No meu esconderijo, só me lembrava da minha mãe contando-me como ela se escondera dos nazis durante o Holocausto e pensei: 'Isto é exactamente como o que aconteceu à minha mãe'.
"Na iminência da chegada da polícia", continua Smadar, "os terroristas levaram Danny e Einat para a praia. Aí, de acordo com testemunhas, um deles assassinou o Danny com um tiro em frente a Einat para que a morte do pai fosse a sua última visão. Em seguida, estilhaçou o crânio da minha menina contra uma rocha com a coronha da arma. Esse terrorista era Samir Kuntar. Passadas umas horas, quando fomos resgatadas, Yael também estava morta. Na tentativa de salvar as nossas vidas, acabei por asfixiá-la."
Na longa e dramática reunião do conselho de ministros que no passado domingo decidiu aceitar os termos do acordo de troca de prisioneiros, foi lida uma carta de Smadar Haran, única sobrevivente da sua família. Nessa carta ela referia que Samir Kuntar não era o seu "prisioneiro pessoal" e que não queria que o seu sofrimento impedisse o governo de fazer o que fosse melhor para o país: "Mesmo que seja muito difícil para mim, não irei contra qualquer decisão que for tomada hoje. Mesmo que a minha alma esteja dilacerada, e está, o meu coração está intacto."
Como se sabe, o Governo votou por esmagadora maioria o acordo com o Hezbollah, através de mediação alemã. Em troca do que tudo indica que serão apenas os corpos sem vida de Goldwasser e de Reguev e de um relatório do Hezbollah sobre o desaparecimento do piloto Ron Arad em 1986, assim como dos restos mortais de soldados mortos da 2.ª Guerra do Líbano, Israel libertará - para além do terrorista Samir Kuntar - mais quatro prisioneiros libaneses e devolverá os restos mortais de dezenas de outros, incluindo oito do Hezbollah. Compromete-se ainda a fornecer ao secretário-geral da ONU informação sobre quatro diplomatas iranianos desaparecidos e, mais tarde, a libertar prisioneiros palestinianos cujo número e identidade serão decididos por Israel.
Anunciando logo no início da reunião a morte quase certa dos dois soldados, o próprio primeiro-ministro, Ehud Olmert preveniu: "Não temos ilusões, haverá em Israel tanta tristeza quanto humilhação, tendo em conta a festa que terá lugar no outro lado". Com efeito, a reacção imediata do Hezbollah foi a de considerar que a libertação de Kuntar "reflecte a força da organização" e "é a prova de que a palavra resistência é a mais fiável, forte e suprema". Aliás, na cidade de Sídon, no Sul do Líbano, a Praça dos Mártires já está decorada com fotografias do "herói" Kuntar e faixas proclamam que "a liberdade vem com sangue, não com lágrimas". Por seu turno, o Hamas já veio a público dizer que a libertação de Kuntar vem dar mais força ao seu próprio combate pela libertação dos presos palestinianos que têm "sangue nas mãos".
Exactamente o que previam os chefes da Mossad e do Shin Bet (Agência de Segurança de Israel), que se manifestaram contra o acordo, assim como três ministros (em 25) que votaram contra, afirmando que o acordo apenas servirá para encorajar mais o terrorismo.
Mas podia Israel fazer outra coisa? Num país em que um dos princípios sagrados é o de nunca abandonar os soldados feitos prisioneiros, seria difícil outra decisão. Na reunião do conselho de ministros em que também participou, o próprio chefe de Estado-Maior do Exército, gen. Askenazi, afirmou: "Como comandante do Exército, eu sou responsável por todos os soldados, vivos ou mortos. Tenho de olhar para eles, olhos nos olhos, e convencê-los de que o Governo tudo fará para os trazer de volta se forem capturados". A pressão da população também não deixou grande margem de manobra ao Governo: na passada semana, em resposta aos apelos directos das famílias dos três soldados raptados, dezenas de milhares de israelitas inundaram o centro de Telavive, apelando a Ehud Olmert para tudo fazer para assegurar a sua libertação. Também grande parte da imprensa e inúmeras organizações da sociedade civil se manifestaram no mesmo sentido. É que, em Israel, a solidariedade não é uma questão teórica ou abstracta. Num país em que não há ninguém que não tenha sido tocado directa ou indirectamente pela guerra ou pelo terrorismo, todos sabem que "hoje és tu, mas amanhã posso ser eu" e esse sentimento de comunhão de destino é uma das bases em que assenta o sentimento de responsabilidade mútua. A mentalidade indiferente de que "isso só acontece aos outros" não existe, não pode existir no país. É uma das razões pelas quais a população apoiou a decisão de lançar a ofensiva no Líbano em 2006: porque depois do rapto de Shalit, Golwasser e Reguev, o próximo poderia ser "o nosso".
Este acordo não foi o primeiro. Israel já nos habituou a trocar restos mortais por dezenas e até centenas de prisioneiros palestinianos ou libaneses. Mas a carga emocional com que o país acompanha e vive sempre estes momentos nunca deixa de espantar os observadores estrangeiros. Disse Olmert que "uma nação que se atormenta por causa do destino de um único homem é uma nação forte que forja laços indestrutíveis de obrigação mútua." Em Israel, contrariamente ao Caim bíblico, todos são, não podem deixar de ser os guardas dos seus irmãos. Investigadora em assuntos judaicos

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