"Estamos desprotegidas de tudo"
As amas da Segurança Social só podem receber quatro crianças, ganham 725,48 euros euros por mês, são pagas a recibos verdes e chegam a trabalhar 12 horas por dia
a Ana é a primeira a chegar. Oito da manhã e está a miúda loura de cabelos encaracolados a entrar em casa da ama Olinda Gonçalves. - O que vamos pintar hoje?
- A bandeira de Portugal!!!
Cristiano e o irmão mais novo costumam aparecer volvida meia hora. Nuna, a morena de cabelos muito curtos, entrará por volta das 9h. Sem stress. O horário da ama conforma-se ao horário laboral dos pais.
- Vou fazer a minha mãe e o meu pai! Ensinas-me?
Olinda não contesta a súbita mudança de planos de Ana. Ajuda-
-a a fazer "uma rodinha" e uns traços em jeito de cabelos.
As crianças chegam-lhe às mãos muito pequenas, com cinco a sete meses de vida. Olinda não as selecciona. É uma das 728 amas que prestam serviço à Segurança Social, 242 delas no distrito do Porto (em Lisboa, a Santa Casa da Misericórdia substitui o Estado). A inscrição e a selecção das crianças cabem a uma equipa técnica do Estado, que também define o regime de permanência.
Sonhava ser educadora de infância, "a vida não o permitira". Trabalhava num armazém de malhas. Um dia, já lá vão 18 anos, soube que o Centro Distrital da Segurança Social abrira vagas para amas, candidatou-se. A sua casa foi sujeita a uma vistoria. E ela cumpriu um período experimental de trabalho de um mês, sob orientação de uma educadora de infância, numa creche.
- Naquela altura, era só o estágio. Com os anos, fui fazendo cursos [propostos pelo Estado]. Fiz cursos de socorrismo, de alimentação, de stress de crianças, do que aparecia.
Ainda agora é mais ou menos assim. Só que o período experimental alargou-se para dois meses, e integra formação teórica. E, de quando em quando, a educadora que supervisiona o trabalho de cada ama convida para umas acções de formação - as amas estão "sempre a actualizar-se".
Para Olinda, "é aliciante" ver as crianças a crescer, ensiná-
-las a andar, a falar, a comer, a ir à casa de banho. Orgulha-se de cada vitória conquistada por elas. Apega-se a elas. Custa-lhe vê-las partir. E estas estão quase a partir. No final de Julho, Ana, Cristiano e Nuna mudar-se-ão para o infantário.
A experiência marca os miúdos. Muitas visitam Olinda ao longo da vida. Há um rapaz que até pede à mãe para o levar a casa de Olinda todos os dias depois do infantário. E isso "é gratificante". A ama interpreta o gesto como uma forma de crianças e pais reconhecerem o seu trabalho.
- O mais velho tem 18 anos, anda na Faculdade de Engenharia. Ainda há um mês o vi, na Queima das Fitas.
É como se coleccionasse pequenos tesouros. Há muitas fotografias na parede, desenhos coloridos. Olinda, como muitas das outras amas que no ano passado embalaram 3320 crianças por conta da Segurança Social, só tem pena de não integrar os quadros da Segurança Social, de ter de passar recibos verdes.
- Um dia que o Governo se lembre de acabar com as amas, estamos desprotegidas de tudo.
A Segurança Social paga 171,10 euros por criança. Um pouco mais pela terceira e pela quarta (191,64). Como cada ama enquadrada pela Segurança Social só pode receber quatro miúdos, ganha um máximo de 725,48 euros por mês (a menos que cuide de uma criança deficiente, o que lhe garante 342,20, se for em exclusivo, ou 383,28, se acumular com outras).
Há anos que as amas exigem a alteração do estatuto de trabalhadoras independentes. Romana Pedro Sousa, presidente da Associação dos Profissionais no Regime de Amas, tem escrito "imensas cartas", já chegou a liderar uma manifestação à porta do Ministério da Segurança Social, em Lisboa; 725,48 euros soa a pouco para quem chega a trabalhar 12 horas por dia e tem de descontar 32 por cento do ganho para a Segurança Social.
Olinda sorri ao ouvir Cristiano pedir para ir lá para fora. "Não trocava esta actividade por outra." Passamos pelo quarto de brincar, acedemos ao pátio. Há muitos brinquedos, jogos, livros infantis. Olinda compra alguns, mas os equipamentos e os materiais necessários para o acolhimento das crianças são fornecidos pela Segurança Social e pelas famílias.
Passa "muito tempo com eles - para os estimular" a falar, a andar, a jogar, a viver. E para os vigiar. Todo o cuidado é pouco, "as crianças são imprevisíveis". De repente, uma delas pode desatar a correr e cair. O período "mais complicado" é quando começam a andar, a ama precisa de ter "quatro olhos". O mais penoso é aos três anos, "quando se vão embora".
Não é fácil compatibilizar esta atenção permanente com a vida doméstica, mas também não é difícil. Olinda desperta às 7h15. Ao receber Ana, já tem "o almoço pré-preparado". No momento de o terminar, põe música, os miúdos dançam. Aproveita a sesta deles para tratar do lanche. Só depois de Nuna sair, limpa a casa de banho, dá "uma varridela" na casa.