A geração R vai ao altar
O Cabaret Maxime organizou a sua versão especial das noivas de Santo António. Na noite de sexta-feira, 13, o Cónego Lello realizou quatro casamentos.
Eram todos a fingir?
a Nenhum Governo tinha tido coragem para aumentar as propinas universitárias desde os anos 40. Mais ou menos na altura em que, na Praça da Alegria, em Lisboa, abriu o Cabaret Maxime, para ser frequentado por intelectuais e artistas, burgueses e até aristocratas.Mas em Junho de 1992, transformado já o Maxime num prestigiado bar de alterne, o Parlamento aprovou a nova Lei das Propinas. De 1200 escudos, a taxa passaria a 200 contos, na euforia do cavaquismo tardio. Os estudantes revoltaram-se. Escreveram no traseiro "Não pagamos!" e baixaram as calças em frente à Assembleia da República. Baixaram também as expectativas que o país tinha colocado neles. Afinal, tinham 20 anos, eram os baby-boomers de Abril. E ninguém lhes tinha explicado o peso simbólico que carregavam nos ombros. Furioso, o director de um influente jornal chamou-lhes Geração Rasca. Mas fizeram manifestações e uma greve, um ministro caiu e a lei foi, não derrotada, mas suavizada.
O grupo que encabeçou a contestação estudava no Instituto Superior Técnico. Eram uns 20. Partilhavam gostos e ideias. Andavam sempre juntos. Desenvolveram a sua própria ideia de irreverência, muito diferente da dos pais. Gostavam dos Ena Pá 2000 e dos Irmãos Catita, de quem não perdiam nenhum concerto, fosse no Ritz Club, fosse no Paradise Garage. Quando Manuel João Vieira concorreu à Presidência da República sob a palavra de ordem "Só desisto se for eleito", apoiaram-no.
O grupo manteve-se unido, pelo menos nos jantares semanais, das sextas-feiras, mesmo depois de quase todos eles terem concluído os doutoramentos e se terem tornado docentes universitários. Luis Mota, o presidente da Associação de Estudantes do Técnico, tornou-se namorado de Rita Canário, também dirigente associativa. Ele tornar-se-ia professor de informática no ISCTE, ela de Física na FCT, da Universidade Nova. Os Irmãos Catita continuaram a ser a banda sonora das suas vidas.
O primeiro casal
Sexta-feira, 13 de Junho de 2008. O Santo António entra em palco e começa a dircursar, de sandálias e braços abertos. "Não vos inquieteis. Deveis, após os votos, fazer muitos filhos e fornicar muito nesta Terra", clama ele, enquanto o Padre Lelo se está a vertir para a cerimónia. "Fornicai, para que muitos filhos possam substituir esses chineses das lojas dos 300. Combatei a imigração candestina."
O Cabaret Maxime organizou a sua versão especial dos casamentos de Santo António. Depois da decadência e do encerramento, o Maxime reabriu em Janeiro de 2006, sob a gestão de Manuel João Vieira e o seu padrasto Bo Backstrom. Tornou-se o santuário permanente dos Irmãos Catita e dos Ena Pá 2000 e de todos os fãs que os acompanharam nas últimas duas décadas. Numa espécie de milagre de Lázaro pós-moderno, consegue ressuscitar artistas como José Cid ou Victor Espadinha, em espectáculos de lotação esgotada. Esquecemo-nos de que eles estavam esquecidos, graças ao grande ilusionista Lello Vilarinho, também conhecido como Lelo Marmelo, Lelo Universal, ou Cónego Lello.
É sob este avatar que Manuel João surge agora em palco, quer dizer, no altar, para celebrar os matrimónios. "Hoje, sexta-feira, 13, vamos casar aqui homens e mulheres, mulheres e mulheres, e mesmo outros que estão fora desse enquadramento económico-social", anuncia o sacerdote da Igreja de Todos os Santos e Mais Alguns.
"Com a bênção do verdadeiro Santo António, ides fazer um investimento no mercado de futuros. Porque é Deus que vos enlaça, como uma trepadeira amazónica."
Aproxima-se o primeiro casal, Isabel e Tiago. Palmas. "Em nome da Igreja de Todos os Santos e Mais Alguns, mais de 3000 santos que vivem em concubinato no Paraíso, em apartamentos duplex em condomínios fechados com vista para o mar..." recita o cónego. "Tiago, desejas profundamente e a sério unir o teu destino, para toda a eternidade, ou pelo menos durante algum tempo, até que a morte vos separe, ou alguma doença horrível que vos faça apodrecer como cadáveres num cemitério, casar com Isabel..."
Que irá ele responder? A expectativa é enorme. Isabel, 28 anos, assistente de recursos humanos, queria casar mesmo. Tiago, 24 anos, mecânico, não. Mas ela viu no telejornal o anúncio do Maxime e pensou que era a solução. Convenceu o namorado a participar na brincadeira. Só quando viu a família toda, a mãe da noiva, os padrinhos, trajados a rigor e reunidos no Maxime, é que ele percebeu que aquilo não era bem uma brincadeira. Pelo menos para a noiva, e respectiva família, não era. "Isto é a ver se ele se entusiasma", explicou ela. Mas o que conseguiu foi que ele ficasse zangado. Por isso ninguém sabe o que vai ele agora, na hora da verdade, responder.
Mas o noivo levanta os olhos para o cónego e diz: "Sim. Proclamo a minha fidelidade, em nome do Pai, do Filho e do Espirito Santo".
Isabel jura o mesmo e Lello abençoa-os: "Pronuncio-vos marido e mulher, até que qualquer coisa vos separe. Podem beijar-se e fazer outras coisas porcas".
O segundo casal
Catarina e Fernando, 35 e 37 anos, já vivem juntos há 6 e têm dois filhos. Mas não se sabe quem tem fugido mais do casamento, ele ou ela. De qualquer forma, é ele que inventa as desculpas esfarrapadas, como esta: "Da última vez que íamos casar, ela ficou grávida. E pronto, lá ficámos sem dinheiro outra vez". Ou esta: "Já tentei, mas não consegui. Meti os papéis na Conservatória, mas depois mudámos de residência... É difícil. Tentei várias vezes, mas não consegui".
Agora, parece que é de vez: vieram os padrinhos e 32 convidados, incluindo as famílias e o patrão da agência imobiliária em que ambos trabalham. E prometem que, para a semana, vão ao Registo Civil legalizar a união. Pelo menos foi o que disseram à mãe da noiva, Dona Rosalina, sentada, feliz, na primeira fila do Maxime.
"Desejas amar e ser fiel à tua mulher para o resto da tua vida, enquanto o mundo for mundo, até que o mundo estremeçae os vulcões alastrem sobre a Terra?", pergunta o Cónego Lello, e Fernando responde, com uma cerveja na mão: "É tudo o que eu mais quero na vida".
"E tu, Catarina, aceitas este homem, para a procriação, até que a morte, ou outro acontecimento mesquinho ou bizarro vos separe?"
"Aceito, mas procriar não quero mais, porque já temos uma menina..."
"Milagre! Milagre!", gritam em uníssono cónego, Santo António e Frei Tuck. "Ainda agora casaram e já nasceu uma menina! É milagre! Aleluia!" E pedem mais 200 mil euros para a Fundação Catita, num cheque que é assinado ali mesmo. "Praise de Lord!"
Finalmente Rita e Luís
A noite está em grande, o Cónego Lello rejubila. Rita e Luís avançam para o altar. "Aceitas esta mulher e toda a sua fecundidade em Jesus Cristo? Aceitas esta joint venture para o futuro?"
"Aceito e desejo-o", responde o doutor Luís, 35 anos, ex-dirigente associativo.
"E tu, desejas unir o teu destino ao deste homem devasso?", pergunta Lello à doutora Rita, que "nunca seria capaz de um casamento tradicional".
"Sim!"
"Se alguém conhece alguma objecção diga-o agora, ou cale-se para sempre, e seja comido no Inferno por ratos com cornos. Proclamo-vos doravante marido e mulher. Ide e multiplicai-vos."
Uma matulona semi-nua vem fazer lap-dancing. Realiza-se um casamento de última hora entre um homem e duas mulheres. Os Irmãos Catita começam o concerto. "Chupas e engoles, tocas gaita de foles, nas minhas partes moles", canta Lello Marmelo. Todos dançam. Até a Dona Rosalina, ao som de Cocaína na Vagina. Mas só até às 4 da manhã. E, desde que os vizinhos protestaram por causa do barulho, sem nunca ultrapassar a barreira dos 89 decibéis.