Vendedor de cozinhas de dia, caçador de planetas à noite
Astrónomos profissionais e amadores deram as mãos para acelerar a descoberta de mais planetas
extra-solares, em redor de estrelas que não o Sol.
João Gregório, de Alcabideche, é um deles. Já tem dois planetas no currículo. E uma paixão pelo céu profundo
a Aos 47 anos, as noites favoritas de João Gregório são passadas num descampado escuro, com um manto de estrelas cintilantes por cima. Fica horas a fio com o telescópio apontado a estes objectos imóveis, simplesmente a captar a sua luz. Monótono, não? "É monótono, é", concorda. Mas João Gregório encontrou uma maneira de aguentar as noites frias de Inverno para dar largas à sua paixão: sopa, chá quente e os amigos do Atalaia, o grupo de astrónomos amadores para onde entrou em 2004. "É com esse grupo que aguento aquelas horas todas. Às vezes começo às cinco da tarde e acabo às sete da manhã do dia seguinte. É difícil estar sozinho, sem companhia..."
Já tem no currículo a descoberta de dois planetas extra-solares, cuja existência foi divulgada, no final de Maio, no site ArXiv.org (onde os cientistas abrem os seus artigos, ainda não publicados nas revistas da especialidade, à discussão dos colegas). Tornou-se assim o primeiro astrónomo amador de Portugal a descobrir planetas extra-solares. Não há muitos como ele, mesmo a nível internacional.
A sua história de caçador de planetas começa a sério em Maio do ano passado, com um convite do astrónomo Peter McCullough, do Instituto Científico do Telescópio Espacial, em Baltimore, nos Estados Unidos (ligado ao velhinho telescópio espacial Hubble e ao seu sucessor em 2013, o James Webb).
McCullough gostaria que João Gregório fizesse parte do Projecto XO, iniciado em 2003, que procura planetas extra-solares com a preciosa colaboração dos amadores. "Fiquei muito contente. Na altura, foi um grande passo. O mundo é tão grande, Portugal tão pequeno, mas eles souberam da minha existência. Algo deu nas vistas."
Tudo começou num Natal
João Gregório já andava há algum tempo a caçar os planetas que tinham sido caçados por cientistas. Até 6 de Outubro de 1995, todos os planetas que se sabia existirem no Universo eram os do nosso sistema solar. Naquele dia, os suíços Michel Mayor e o seu estudante de doutoramento Didier Queloz, do Observatório Astronómico de Genebra, revelavam o que se suspeitava há muito tempo.
Na Via Láctea, em órbita da estrela Pégaso 51, a 50 anos-luz de distância da Terra, lá estava um planeta gigante feito de gases, com metade do tamanho de Júpiter. Foi descoberto de forma indirecta, através de pequenas oscilações da estrela, para trás e para a frente, sob o efeito da gravidade do planeta - chama-se método de velocidades radiais. Desde então, a lista de planetas não tem parado de crescer. Vai agora em cerca de 280.
Até ao ano passado, João Gregório entretinha-se a "descobrir" o que outros já tinham descoberto. Apontava o telescópio para a estrela que já sabia ter um planeta em órbita e voltava a fazer medições da luz (fotometria) que denunciavam a sua presença. "Dava-me gozo fazer a fotometria desses planetas que já tinham sido detectados", conta. Foi assim que despertou a atenção de McCullough.
Agora é um dos 11 astrónomos amadores (seis nos Estados Unidos e cinco na Europa ) do Projecto XO. De Portugal é o único; os outros europeus são de Espanha, Itália e Bélgica.
Em apenas um ano no projecto já colheu frutos de ter o nome em dois artigos científicos associados a dois planetas (o XO-4b e o XO-5b), ambos na constelação do Lince, a mais de 800 anos-luz de distância da Terra e a demorarem apenas quatro dias a completar uma órbita às suas estrelas. "São planetas de uma classe que se chama Júpiter, porque são grandes. É por serem tão grandes que conseguimos detectá-los. Planetas do tipo da Terra estão longe de ser fáceis de detectar."
Mesmo a astronomia não entrou na vida de João Gregório assim há tanto tempo. Mas quando entrou foi a sério. Tudo começou no Natal de 2002, quando o filho, de dez anos, lhe pediu: "Ó pai, eu gostava de ter um telescópio", conta o caçador de planetas. "Não queria acreditar no que estava a ouvir. Ele disse telescópio?! Era uma daquelas coisas que namorava desde a minha infância. Fui mesmo comprar o telescópio. E, claro, não foi para ele, foi para mim e a partir daí foi o descalabro. A astronomia passou a fazer parte do meu dia-a-dia."
Ou melhor, das noites. "Durante o dia sou vendedor de cozinhas. Tenho uma loja, uma sociedade, que vende cozinhas em Alcoitão [perto de Cascais]." Foi há mais de 20 anos que se iniciou no negócio das cozinhas, depois da tropa, que foi logo a seguir ao 11.º ano de escolaridade.
Soube do tal grupo de astrónomos, que existe desde 2000, através de amigos. "Nasci para o Grupo da Atalaia no Natal de 2002. Comecei a frequentá-lo e, em 2004, convidaram-me para fazer parte. Fiquei muito entusiasmado. A filosofia do grupo é o convívio, a amizade. Somos amadores, mas levamos isto muito a sério."
Um campo de estrelas
Têm cerca de 15 membros; a maior parte dedica-se a "fazer imagens bonitas" do céu profundo. Galáxias, nebulosas, restos de estrelas moribundas. João Gregório também passou por essa fase na sua iniciação à astronomia. "Olhei para ver Saturno pela primeira vez, para a Lua... Fiz imagens do céu profundo, dediquei-me a cometas, a asteróides, que são coisas que mexem."
Depois começou-se a falar mais de planetas extra-solares, ou exoplanetas, e pensou: "Olha, que interessante. Dá para fazer gráficos giros. E também há o valor científico do que estamos a analisar."
Só que dos planetas extra-solares nem os mais poderosos telescópios, em terra ou no espaço, conseguem ter hoje uma imagem, como temos de Júpiter ou Saturno - quanto mais um telescópio amador. Tudo o que João Gregório vê é um "campo de estrelas".
Nas horas em que mantém o telescópio apontado para a zona do céu onde está o candidato a planeta, limita-se a captar a luz da estrela eventualmente orbitada por um exoplaneta. Não aponta ao acaso. Do lado de Peter McCullough, o líder do Projecto XO, começou por haver um rastreio prévio do céu com um pequeno telescópio no Havai. Saiu daí uma lista de possíveis candidatos, que é entregue aos astrónomos amadores, tudo na maior confidencialidade. Têm então a tarefa de confirmar se é mesmo um planeta ou outra coisa.
João Gregório deve ter em mãos uns 40 candidatos a planetas. Entregaram-lhe tabelas que indicam os dias e as horas em que existe a possibilidade de os planetas começarem a travessia à frente das estrelas. Tal como os outros astrónomos amadores, utiliza o método dos trânsitos para os apanhar - fica à espera que um planeta faça uma passagem à frente da estrela e lhe roube um bocadinho de brilho. Se a redução do brilho for periódica, quer dizer que pode andar por ali alguma coisa. Um planeta? Outra estrela que se meteu à frente?
"Temos de ficar à espera. Depois, o trabalho é em casa, já não preciso de um chá quente." As imagens descarregadas directamente do telescópio para o computador portátil são processadas com software especial. O resultado é um gráfico sobre a luz da estrela. João Gregório envia-o para os Estados Unidos.
Os astrónomos profissionais entram então de novo em cena, para tirar a prova dos nove com o método das velocidades radiais. Se algum dos candidatos passou no escrutínio até aqui, o Telescópio Hobby-Eberly, de 9,2 metros de diâmetro, no Texas, vai procurar variações periódicas numa estrela causadas pelo efeito gravitacional de um corpo à sua volta. Se a velocidade e a posição da estrela oscilarem periodicamente, é porque deve mesmo existir um planeta à sua volta.
Juntando os dois métodos de detecção, é possível descobrir um corpo em órbita de uma estrela, confirmar que é um planeta e até saber a sua densidade. A técnica dos trânsitos dá uma ideia do raio do objecto a passar à frente da estrela e do tempo que leva a completar uma órbita, mas tem limitações. Não permite dizer o que é e o que não é um planeta, porque uma estrela muito pequena e um planeta muito grande parecem ter o mesmo tamanho. Já a técnica das velocidades radiais permite determinar a massa e dizer se é uma estrela, um planeta ou outro objecto.
"Para detectar um planeta pelo método das velocidades radiais é preciso muito tempo de telescópio. O tempo de telescópio profissional é escasso. Mas os amadores têm muito, é por isso que somos a força bruta deste projecto", diz o português.
"Esta colaboração deu os seus frutos e, ao contrário do que se possa pensar, os amadores, com os seus telescopiozinhos pequenininhos, são de uma importância extrema em certas áreas e conseguem aproveitar melhor as suas capacidades em prol da ciência", escreveu João Gregório na sua página na Internet, a Astro Gregas.
A ameaça do aeroporto
Nuno Santos, um caçador profissional de planetas, um dos poucos portugueses a fazê-lo, não podia estar mais de acordo. "Acho excelente que haja amadores capazes (e interessados) de fazer este tipo de trabalhos", diz o cientista, do Centro de Astrofísica da Universidade do Porto, que já participou na descoberta de cerca de 80 planetas, a maioria com a equipa de Michel Mayor e Didier Queloz. "Tal é possível na área de detecção dos trânsitos, porque o equipamento amador já é capaz de permitir uma precisão suficiente para detectarmos exoplanetas em trânsito, sobretudo e quase apenas no caso de planetas gigantes."
O "telescopiozinho" agora utilizado por João Gregório é um Schmith-Cassegrain, de 30 centímetros de diâmetro, emprestado por um amigo. Sempre que pode, todo o equipamento vai para a bagageira do carro e aí vai ele de Alcabideche para o local de observação. "Sou um astrónomo de fim-de-semana. Tenho de deslocar-me 50 quilómetros, montar o equipamento todo e dar início à sessão de observação."
Onde é, afinal, esse descampado escuro? Fica perto da localidade da Atalaia, no Montijo, onde será o novo aeroporto. "Vão construir o aeroporto em cima da nossa cabeça. Vamos perder o nosso local. As opções são tenebrosas: fazer mais quilómetros para fugir das luzes da cidade." O Alto Alentejo é uma das opções, porque nada fará João Gregório desistir da caça aos planetas. "Vou continuar com toda a força."