O parturiente do encanto

Já tínhamos tido oportunidade de ver o maliano Toumani Diabaté a acompanhar o deus da guitarra Ali Farka Touré (com a banda deste), já o tínhamos visto com a sua Symmetric Orchestra. E até tivemos a sorte de, em Bruxelas, ver Diabaté e Touré em dueto, sem banda por trás, a interpretar temas do disco que gravaram a meias, In The Heart Of The Moon, de 2005. Mas este ano Diabaté editou, pela primeira vez desde Kaira, disco de estreia de há duas décadas, um disco a solo apenas com a kora, The Mande Variations, e resolveu voltar aos palcos sozinho. Aposta ganha: Toumani não precisa de mais ninguém para encantar.Diabaté passou as últimas duas décadas na mencionada Symmetric Orchestra a juntar a música maliana a todos os ritmos negros - mais ou menos contemporâneos - que a História disponibiliza, unindo a kora a metais, percussões, cordas, teclas. Nestes 20 anos tornou-se um embaixador da música africana, mas foi apenas após a edição de In The Heart Of The Moon que o mestre da kora chegou a uma audiência quase mainstream - por isso, na sexta-feira à noite, a sua passagem pela Culturgest foi um acontecimento.
O concerto, como não podia deixar de ser, passou por Kaira, tema título do disco de estreia (e primeiro disco no mundo a ser gravado exclusivamente com kora), acabando em The Mande Variations. Diabaté, reduzido às 21 cordas da harpa africana (como se costuma dizer), despiu a sua música, tornou-a hipnótica - tocou seis, sete temas no máximo, prolongou cada um ao limite e nem por um momento foi aborrecido: o cérebro habitua-se à lenga-lenga rítmica, cai numa espécie de torpor e vai absorvendo cada subtil alteração.
O maliano foi ao cúmulo de, no fim, demonstrar como constrói a sua música: fez nascer um ritmo com dois dedos, uma melodia com um e a harmonia com o quarto. E explicou: a partir de um padrão rítmico adiciona uma melodia, por cima dessa melodia improvisa a harmonia e vai introduzindo ligeiras variações, como se aplicasse a máxima deleuziana: diferença e repetição.
Partiu então para a prática: uma longa improvisação, em que procurava ritmos, encontrava minúsculas partículas de melodia, avançava, retrocedia, e de súbito encontrava um lugar em que todas as peças encaixavam e a música parecia levitar por si própria. E quando aí chegava acelerava o ritmo até criar uma sensação de suspensão, de quebra de respiração, para de novo desacelerar até atingir um mantra para repousar a cabeça.
Obsessivo com o controlo do som (não houve uma reverberação a mais), tocou sempre de olhos fechados e, tal como tinha avisado, foi pedagógico, tal como tinha prometido foi espiritual, pelo menos se tomarmos a palavra no sentido de criar um estado mental propício ao encantamento. Não é difícil ser um mestre, difícil é ser um parturiente de palco, criar ali, naquele instante, a mesma música de sempre como se esta nascesse pela primeira vez naquele exacto instante.

João Bonifácio

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