Gustav Klimt e a vida na Viena de 1900
É a exposição-acontecimento da Capital Europeia da Cultura britânica: a arte de Gustav Klimt e de como ele, e outros à volta dele, desassossegaram a vida artística, e social, da capital austríaca na viragem dos séculos XIX-XX. Fica até final de Agosto
a Os vinte mil visitantes (de todo o mundo) que, nas últimas semanas, acorreram em massa a fazer as suas reservas de bilhetes não vão lá encontrar os retratos de Adele Bloch-Bauer I (o quadro cuja venda em leilão, há dois anos, por mais de 86,6 milhões de euros, constituiu à época um recorde na história da pintura), nem de Judith, nem de Danaé, nem sequer O Beijo. Mesmo assim, a exposição Gustav Klimt. Pinturas, Desenho e Vida Moderna na Viena de 1900, ontem inaugurada na Tate Liverpool, é um dos acontecimentos da Capital Europeia da Cultura britânica. Ela é também a mais ambiciosa e a mais completa reunião da obra do pintor austríaco jamais apresentada no Reino Unido, e que dificilmente será repetida. "É talvez a primeira e a última vez que podemos ver Klimt entre nós", disse Christopher Grunenberg, director da Tate Liverpool, na conferência de imprensa de apresentação da exposição. Porque "cada vez é mais difícil organizar uma exposição como esta; as obras são demasiado valiosas, raras e difíceis de obter", justificou o responsável pela extensão naquela cidade da Tate Gallery, citado pelo Liverpool Daily Post.
Gustav Klimt. Pinturas, Desenho e Vida Moderna na Viena de 1900 reúne cerca de 250 peças, que, para além da pintura, contemplam a escultura e a arquitectura, mas também o design e as artes decorativas (mobiliário, candeeiros, tapetes, louça, jóias...), associando à obra do pintor simbolista (com um terço das obras) os nomes e os trabalhos dos seus companheiros da Secessão de Viena - o movimento artístico fundado por Klimt em 1897, que marcou sobremaneira a vida artística, e social, da capital austríaca na viragem dos séculos XIX-XX.
Cópia do friso
Percebe-se que a extensão desta "exposição abrangente" da obra de Gustav Klimt (1862-1918) ao movimento da Secessão seja uma forma inteligente de a Tate e Liverpool 2008 contornarem a impossibilidade de reunir os quadros mais famosos do pintor dos retratos de Adele Bloch-Bauer. Algumas das suas obras estão presentemente numa exposição na Neue Galerie de Nova Iorque, mas as mais conhecidas são ou tão frágeis ou tão valiosas que repousam guardadas nos reservados dos museus ou em colecções privadas de proprietários que simplesmente não as deixam viajar, como, anteontem, lembrava a crítica de arte do Times, Rachel Campbell-Johnston.
O tour de force dos responsáveis por Gustav Klimt. Pinturas, Desenho e Vida Moderna na Viena de 1900 foi a apresentação duma cópia à escala real do famoso Friso de Beethoven (1902), que o pintor esculpiu para decorar uma parede do Edifício da Secessão em Viena, e que foi simultaneamente casa e manifesto daquele movimento que perseguia a "obra de arte total" (Gesammtkunstwerk), reunindo num mesmo gesto criativo e expressivo a pintura, a escultura, a arquitectura, o design, o artesanato ou a música. O friso, com mais de 34 metros de extensão, foi criado a partir da 9ª Sinfonia de Beethoven e da sua interpretação wagneriana de luta da humanidade na procura da liberdade e da felicidade do espírito. Transformou-se num ícone da arte nova, de que Klimt passou a ser considerado um expoente maior, e é actualmente a principal atracção da casa da Secessão, que se mantém em Viena como uma galeria de arte.
Na exposição de Liverpool estão, contudo, mais de uma vintena de telas representativas da riqueza da pintura de Klimt, o simbolista. Entre elas, o Cavaleiro Dourado, que Rachel Campbell-Johnston diz poder ser visto como o seu auto-retrato, enquanto "símbolo do espírito criativo"; Nuda Veritas, a mulher nua rodeada por uma serpente; a também famosa Three Ages of Life, alegoria da vida humana vista nas suas dimensões da infância, da idade adulta e da velhice. E está ainda o cartaz que Klimt desenhou para a primeira exposição do movimento Secessão (1898), representando um guerreiro nu e com os genitais expostos, o que provocou grande polémica nas mentes de uma sociedade que até então só aceitava o nu como tema artístico, se ele fosse feminino - o cartaz foi censurado e o pintor obrigado a acrescentar-lhe motivos que tapassem o sexo do guerreiro.
Criador de ícones
Na exposição, seguindo um percurso mais ou menos cronológico - tanto para a obra de Klimt como para o movimento artístico na capital austríaca da época -, estão igualmente documentadas as várias fases da obra do pintor. Podem ver-se desde os seus primeiros desenhos gráficos, marcados por um classicismo sereno, até à opulência da fase do estilo mosaico bizantino com que Klimt dourou a burguesia vienense sua contemporânea, passando pelas artes decorativas associadas à arquitectura. O pintor desenhou painéis e murais para palácios, escolas e outros edifícios públicos, muitas vezes em parceria com o seu amigo e companheiro da Secessão, o arquitecto Josef Hoffmann (1870-1956), o segundo artista mais tratado na exposição. Mas há também paisagens, tema que Klimt cultivou igualmente, e desenhos da sua fase erótica mais tardia e que voltariam a motivar polémica (e censura), que o artista contornou recusando-se a expor publicamente os seus trabalhos.
Retrato de uma época, e de uma cidade que rivalizou com outras capitais europeias, como Paris e Berlim, como pólo de contestação e de inovação nos códigos estéticos e também sociais, Gustav Klimt. Pinturas, Desenho e Vida Moderna na Viena de 1900 será certamente procurada pelos visitantes britânicos, e de muitos outros países, como uma oportunidade rara para ver o conjunto possível da obra de um pintor que os responsáveis pela exposição colocam ao nível de Picasso, Matisse ou Cézanne. Rachel Campbell-Johnston classifica-o como "o criador de ícones da era moderna". "Chega colocarmo-nos diante de uma das suas obras-primas para perceber porquê. Não é apenas a superfície tremeluzente das suas obras que impressiona: é a lenta, lânguida atracção de uma tentação mais funda. Somos atraídos pela força das suas composições opulentas como os seus amantes em abraços voluptuosos", escreve a crítica do Times.