A Lisboa que Corbusier inspirou
Uma grande exposição no Museu Berardo e um seminário internacional, que começa hoje no Museu da Electricidade - em Lisboa, por estes dias, encontramos Le Corbusier por todo o lado. E porque não uma visita, com dois arquitectos, aos edifícios da capital inspirados por uma das grandes figuras da arquitectura do século XX? Por Alexandra Prado Coelho
a Na primeira metade do século XX, um homem que chamava a si próprio Le Corbusier sonhava com a cidade perfeita e defendia os seus princípios no Congresso Internacional de Arquitectura Moderna. No Portugal dos anos 50, sob a ditadura, uma geração de jovens arquitectos acompanhava avidamente os debates que se faziam na Europa e as propostas do arquitecto de origem suíça - e arriscava construir alguns edifícios inspirados por elas. Na Lisboa de hoje continuamos a cruzar-nos com esta herança de Le Corbusier. As propostas de Le Corbusier correspondiam a um "princípio mental, muito radical, de uma cidade higienista", explica Ricardo Carvalho, crítico de arquitectura do PÚBLICO. "Em Lisboa nunca houve nenhuma experiência com essa radicalidade". Mas há alguns exemplos em pequena escala: o Bairro das Estacas e o Liceu Padre António Vieira, em Alvalade, os edifícios ao fundo da Avenida Infante Santo e o Bloco das Águas Livres. É por estes locais que os arquitectos Michel Toussaint (no dia 31 às 10h) e Ricardo Carvalho (dia 7 de Junho às 10h) vão fazer visitas guiadas pela Lisboa "corbusiana" - iniciativa da Ordem dos Arquitectos, que acompanha a exposição sobre o arquitecto actualmente no Museu Berardo, e o colóquio internacional que se realiza hoje e amanhã no Museu da Electricidade sob o tema Rethinking Le Corbusier (programa em www.oasrs.org/rethinking_le_corbusier/).
Bairro das Estacas (1949-55)
Arquitectos Ruy Athouguia e Sebastião Formosinho Sanchez
Com a construção do bairro de Alvalade, numa zona onde Lisboa estava a crescer, havia, diz Ricardo Carvalho, "a possibilidade de testar novas formas de fazer cidade". E o Bairro das Estacas "foi uma das primeiras experiências a desafiar a relação dos edifícios com o solo". Aparecem aí os célebres pilotis (ou estacas), e os edifícios erguem-se acima de um "tapete de natureza", os jardins projectados por Gonçalo Ribeiro Teles. O projecto foi encomendado pela Câmara Municipal de Lisboa e foi ela que zelou para que ele fosse respeitado. "Os construtores eram contra os pilotis porque queriam aproveitar a parte de baixo dos edifícios para abrir lojas, e a câmara disse que não", recorda Michel Toussaint. "É extraordinário como em plena ditadura a câmara consegue ter uma atitude em relação à cidade e aos cidadãos que nunca mais voltou a ter", comenta.
Outra inovação que o Bairro das Estacas traz, prossegue Ricardo Carvalho, é "o desaparecimento da ideia de quarteirão". Os edifícios são construídos "em bandas paralelas entre si, que correm perpendicularmente em relação à linha do comboio" que cruza a Avenida de Roma - um modelo que cria um claro distanciamento em relação ao que era o desenho das cidades do século XIX. A obra foi premiada, em 1954, na Bienal de Arquitectura de São Paulo.
Liceu Padre António Vieira (1959-64)
Arquitecto
Ruy Athouguia
Não muito longe dali ergue-se o antigo Liceu, hoje Escola Secundária Padre António Vieira, também da autoria de Ruy Athouguia. A geração de arquitectos como Athouguia ou Nuno Teotónio Pereira "afasta-se do ecletismo da geração anterior e assume já claramente o ideário moderno como vocabulário estético", afirma Ricardo Carvalho. No liceu isso vê-se, por exemplo, na rampa, que se baseia na ideia - muito corbusiana - dos percursos cenografados dentro dos edifícios, a que o arquitecto de origem suíça chamava promenade architecturale, e que implicava o passear pelo edifício para melhor usufruir a arquitectura. Além disso, refere o arquitecto que fará a visita guiada de dia 7, o liceu é composto por vários volumes, o ginásio, o átrio, as salas de aula, num exemplo de uma arquitectura "que começa a ser estruturada volumetricamente" a partir das funções dos diferentes espaços. A isso soma-se uma "dramatização da estrutura", com, por exemplo, os pilares de betão à vista, para "mostrar as componentes do edifício". No mesmo bairro, Athouguia projectou ainda as escolas primárias do Bairro de São Miguel e a Teixeira de Pascoaes.
Conjunto da Av. Infante Santo (1955)
Arquitectos Alberto José Pessoa, Hernâni Gandra
e João Abel Manta
Mudando para outra zona da cidade, encontramos mais alguns exemplos da influência das ideias de Le Corbusier sobre os arquitectos portugueses. É o caso dos edifícios ao fundo da Infante Santo, do lado esquerdo, também uma encomenda da Câmara Municipal de Lisboa. Aqui, explica Ricardo Carvalho, os edifícios foram elevados, mas colocados sobre uma espécie de pódio com um jardim em cima. Ou seja, no plano inferior da rua existem lojas, e é sobre estas que surge o jardim e sobre este os edifícios. Mais uma vez é um projecto onde "a influência de Corbusier é muito directa".
Também aqui estava-se, na década de 50, perante "terrenos expectantes", adianta Michel Toussaint. A construção dos blocos corresponde ao momento em que é feito o prolongamento da avenida, e os arquitectos podem aí testar a ideia de "uma cidade de edifícios soltos no meio de espaços verdes". No interior as habitações são em duplex - outro conceito defendido por Le Corbusier.
Bloco das Águas Livres (1953-55)
Arquitectos Nuno
Teotónio Pereira e Bartolomeu Costa Cabral
Tem tudo a ver com Le Corbusier e com a sua Unidade de Habitação de Marselha (aliás, Teotónio Pereira, lembra Toussaint, foi quem primeiro publicou em Portugal a Carta de Atenas, que estabelecia os princípios básicos da arquitectura moderna). Localizado próximo das Amoreiras, o Bloco das Águas Livres é, como o de Marselha, um edifício de habitação colectiva, mas, ao contrário do seu "colega" francês, o lisboeta não se destina a habitação social para classes carenciadas mas sim às classes médias altas. "A unidade de Marselha é feita para uma população razoavelmente grande", explica Michel Toussaint, "o que justifica ter no próprio edifício uma série de equipamentos, um ginásio, um pequeno hotel, um parque infantil e até uma rua com lojas".
O Bloco das Águas Livres, obra promovida pela Companhia de Seguros Fidelidade, tem um programa diferente porque se trata de habitação para alugar. Aí o primeiro andar é reservado a escritórios, em baixo há lojas e havia inicialmente um estacionamento que foi depois transformado em garagem, há um jardim, uma lavandaria colectiva - que, comenta Toussaint, nunca foi usada, porque os habitantes tinham todos máquinas de lavar próprias -, uma cobertura com uma sala comum onde se podiam dar festas, e ainda ateliers nesse último andar comum. "É um edifício muito completo do ponto de vista do equipamento, e de uma grande polifuncionalidade" - um modelo que em Portugal não se voltou a repetir, pelo menos "com esta complexidade".
O edifício tem dois grandes murais em mosaico de Almada Negreiros, e relevos de pedra de Jorge Vieira.