Torcato Sepúlveda, grande jornalista, bom amigo
Já quase não há jornalistas assim. Tal como rareiam amigos verdadeiros como só são os que nos dizem sempre tudo, na euforia ou na fúria. Homens tão inteiros como excessivos. Era assim o Torcato
Nunca se está preparado para a morte de quem nos é próximo. Ainda menos quando a morte chega quase sem pré-aviso. Sem dar tempo para nos despedirmos. Mas isso é o menos importante. De certa forma, fica connosco, torna sombrias horas como as que ontem se viveram, ao final do dia, neste jornal que ele ajudou a fundar e formatar. O que dói mais é quando se percebe de repente que o que nos faltou dizer não foi adeus - foi tudo o resto que devíamos ter dito muito antes. As conversas que não tivemos. As cumplicidades que perdemos. Os livros que não comentámos. As alturas em que não nos encontrámos. As livrarias e os alfarrabistas onde não nos perdemos.
O que dói é esta sensação de que somos devedores de alguém como o Torcato Sepúlveda e que nunca lhe dissemos isso suficiente alto. Ou sequer baixo.
Não porque não tivéssemos passado tanto tempo a planear o jornal, a fazer o jornal, a discutir o jornal, a perdermo-nos em conversas infinitas depois do fecho do jornal, a encontrarmo-nos para um almoço, um jantar, durante o lançamento de um livro, na casa de amigos, na rua por acaso. Mas porque o Torcato era um jornalista como já quase não existem, com todo o seu talento, a sua entrega, os seus excessos, a sua imprevisibilidade, as suas fúrias, a sua entrega total ao que fazia em cada momento, mesmo nas alturas em que se sentia que não era feliz nem sentia que reconhecessem o seu talento. Sempre sincero, sempre companheiro, sempre generoso, sempre frontal, nem sempre racional, tinha uma das colunas vertebrais mais direitas que conheci em mais de 30 anos de profissão.
Ontem, quando a notícia chegou de chofre, quando ela desencadeou emoções que as más notícias das horas anteriores não tinham antecipado, o que neste jornal vivemos em conjunto com ele ganhou um outro sentido. Até porque ele era realmente único.Nascido em Braga, era o antiarcebispo. Estudante em Coimbra durante uma das grandes crises universitárias, envolveu-se com o mais minoritário dos grupos. Exilado na Bélgica, fez de tudo. De regresso a Portugal, adopta múltiplos heterónimos como tradutor da Antígona - foi D. Luís da Cunha e foi Buiça e foi Silva de Viseu - e também começa a escrever crítica literária, no Expresso, como João Macedo.
Quando o conheci, morava em Sintra e eu era um novato no Expresso. Mas ele também não aparecia pela Duque de Palmela, pois fazia todo o trabalho da semana em dois dias e duas noites sem dormir e sem sair da gráfica onde revia provas. Fiel às suas convicções, nunca se recenseara para votar e costumava comentar que só tinha pena de não votar nas autárquicas, contra gente que ele achava que só pensava em deitar fogo à serra para expandir as urbanizações.
O Vicente, mal começámos a preparar o PÚBLICO, convidou-o para editor da Cultura, e quando pela primeira vez nos reunimos para falar do projecto num andar da Fontes Pereira de Melo, ainda sem uma única secretária, o Torcato apareceu logo com uma legião de críticos e colaboradores em quem já incendiara o entusiasmo por um jornal que ainda levaria quase um ano a nascer. Com ele, era sempre assim: entrega total. Nada de coisas mornas: ou quente, ou frio. Nada de cinzentos: ou branco, ou preto.
Pagou por vezes demasiado caro a sua maneira de ser, esta sua total frontalidade, o seu papel decisivo para acabar com as águas turvas de uma certa crítica literária que nunca era capaz de dizer mal porque se curvava perante as susceptibilidades dos bonzos da "cultura". Ou, noutras ocasiões, quando a paixão com que vivia cada momento e cada projecto, o levava a cometer imprudências desnecessárias. Mas sempre corajosas. Mas sempre sem voltar a cara aos amigos, sem passar rasteiras, sem dizer pelas costas o que não dissesse também pela frente.
Talvez por isso, no meio de tantos amigos - e de uma enorme multidão de cumplicidades e afectos -, o Torcato era um homem só. Não encaixava bem em lado nenhum. E também apreciava a solidão, mesmo quando esta o angustiava e levava a querer fugir da realidade. Há bem pouco tempo, em Janeiro, numa entrevista à rádio de Braga, a Rádio Universidade do Minho, ele dizia, a propósito da sua relação com os livros: "A leitura é para mim um prazer porque me cria solidão, porque me dá um tempo próprio que vivo dentro de mim próprio." Mais: "A procura desse mundo que é meu é que me dá prazer, porque posso estar no meio da barulheira de um café a construir o meu próprio mundo."
Esta sua assumida necessidade de ter o seu mundo, e um mundo que não era deste tempo, por vezes ancorado nas suas referências clássicas do século XIX, outras na suas referências estéticas surrealistas, que também lhe permitia ter o desprendimento com que se lançava a cada trabalho de reportagem com o entusiasmo do liceal, que lhe permitia separar as suas convicções daquilo que retratava com uma sobriedade onde se notava, por vezes, a influência da secura de Hemingway, um dos autores que descobriu ainda em Braga. E ser um jornalista que tanto era crítico de pena acerada como escrevia uma pequena notícia com a maior economia de palavras, tudo com a mesma naturalidade.
Os seus excessos podiam desesperar-nos, as suas fúrias homéricas eram capazes de aterrorizar uma redacção inteira, mas agora só sou capaz de citar outro dos seus amigos, Francisco José Viegas: "Nunca se devia chorar desta maneira a quem nunca se dirá adeus, adeus, adeus, mesmo que essa palavra exista, mesmo que essa palavra não exista lá, para onde vais."