Torne-se perito

Alkantara Lisboa tem uma casa para a criação contemporânea com vista para o rio

a Para encontrar a nova sede do Alkantara, perto do rio, é preciso andar à procura. Não que o número da porta tenha sido retirado ou que os cartazes que anunciam o festival que hoje começa e que até 8 de Junho vai passar por 17 espaços de Lisboa estejam escondidos. O problema, diz-nos António Lopes, que lê o jornal num dos cafés perto do Largo de Santos, bem perto, é que ninguém espera ver ali um teatro. "No tempo dos nobres aquilo fazia parte do palácio do marquês", como quase toda a rua, aliás. "Depois foi tipografia, fábrica, armazém. Teve muito tempo abandonado. Pensei que já ninguém pegava naquilo e agora dizem-me que é para os artistas e que até vai ter público... Como é que se pode fazer dali um teatro?"A pergunta deste lisboeta de 72 anos que sempre viveu na cidade serve para começar a definir o perfil da nova casa do Alkantara, o projecto de artes performativas que começou em 2005 e teve o seu primeiro festival no ano seguinte, em substituição do Danças na Cidade, que já existia desde 1993: O nº 99 da Calçada Marquês de Abrantes não quer ser um teatro. Quer ser um espaço de criação longe das limitações das salas de espectáculo convencionais.
Quando a porta da nova sede (600 metros quadrados) se abre - como acontecerá todos os dias do festival entre as 12h e as 2h, com uma programação especial de debates e concertos a partir das 24h - dá acesso a um espaço amplo, com humidade nas paredes brancas, traves de madeira envelhecidas no tecto e uma porta de ferro gradeada a dividir uma sala cheia de janelas por onde entra a luz vinda do rio. Foi este espaço que conquistou Mark Deputter, o director artístico do Festival Alkantara, que viu nele "muitas potencialidades", mesmo no meio do entulho e dos caixotes deixados pela gráfica que ali funcionou antes de o edifício ter ficado devoluto e de, em 2001, ter sido comprado pela Câmara Municipal de Lisboa, que o cedeu ao Alkantara em 2007, por um período de seis anos (renovável por mais seis), com uma renda simbólica de 50 euros por mês.
Sem formatos
"Procurámos muito um espaço como este", explica Deputter, que há mais de dez anos tenta dar à associação e ao festival que fundou com Mónica Lapa (1965-2001) - então Danças na Cidade - uma "identidade definida" para a qual contribui muito um lugar onde os artistas, os críticos, os programadores e o público se possam encontrar num ambiente informal, e não apenas quando há um festival como o Alkantara, este ano com 26 espectáculos que pretendem mostrar o que de mais contemporâneo se faz na dança, na performance ou no teatro europeu, africano e asiático, através do trabalho de criadores como Faustin Linyekula, Lemi Ponifasio, Alain Platel, William Yang, Aydin Teker, Akram Khan, Vera Mantero ou Miguel Pereira (ver caixa e suplemento Ípsilon amanhã).
"Este lugar estava virgem, com alma, senti que podia ser aqui", diz Deputter, que o ano passado convidou artistas de várias áreas, portugueses e estrangeiros, para reflectir sobre o futuro e o modelo a aplicar à nova sede. O director artístico defende que Lisboa não precisa de mais um espaço cultural institucionalizado - "a cidade tem muitas e boas salas de espectáculo" -, mas garante que continuam a fazer falta "lugares de grande flexibilidade onde a arte e os artistas não tenham de obedecer a formatos pré-definidos e onde a experimentação seja o mais importante, sempre acompanhada de uma reflexão teórica que olhe para o que se passa no mundo de hoje, onde a cultura tem cada vez mais um papel fundamental, político".
A versatilidade do projecto, e a sua ambição de fazer parte de uma rede de estruturas em que o trabalho dos artistas seja acompanhado de forma continuada, estabelecendo pontes com núcleos de criação internacionais, são duas das principais qualidades do projecto Alkantara, segundo os programadores e artistas ouvidos pelo P2. É por se tratar de um espaço de trabalho, e não somente de apresentação, que Lisboa precisa do Alkantara?
"O Alkantara [festival] é uma ponte com o mundo essencial à dança contemporânea portuguesa e ao público lisboeta", defende Gil Mendo, programador de dança da Culturgest. "Com o seu novo espaço, é um elo fundamental de uma cadeia que inclui outras estruturas que foram com muito esforço e engenho dotando Lisboa de espaços que, sendo de trabalho, de pesquisa e de formação, se abrem sistematicamente ao público e são realmente um serviço à cidade."
Miguel Honrado, presidente do conselho de administração da EGEAC (Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural, parceira do Alkantara no festival), também acredita que Lisboa não precisa de mais salas de espectáculo, mas não tem dúvidas de que fazem falta centros de criação voltados para a contemporaneidade e abertos à comunidade. Espaços como o do Alkantara, diz, "são sumamente importantes numa cidade em que a criação contemporânea ainda está, de certa maneira, remetida para uma certa "ghetização", "críptica" e "elitista"."
Remodelar sem fechar
Com um orçamento de 905 mil euros (38 por cento dos quais assegurados por co-produtores como o Centro Cultural de Belém, o Teatro São Luiz, a Culturgest e a Fundação EDP, e 26 por cento financiados pelo Ministério da Cultura) o Festival Alkantara que hoje começa é apenas a face mais visível de um projecto que, com casa nova, quer, e vai, "pensar a longo prazo", diz o seu director artístico.
"Aqui [no tal nº 99 com vista para o rio] podemos dar aos artistas o maior luxo de todos - espaço. E, se planearmos bem, tempo." Deputter não quer fechar a nova casa para obras de remodelação, abrindo-a dois anos depois, com as paredes limpas e sem infiltrações. Quer que os artistas participem na "reconstrução", estabelecendo uma "ligação directa entre os conteúdos e a evolução arquitectónica do espaço".
Os custos de reconversão não estão ainda determinados - "não será um projecto de milhões", certamente -, mas já se sabe que terá a participação de arquitectos portugueses e holandeses (o atelier Stealth) e que deverá começar pelo telhado de zinco enferrujado. As obras na cobertura estão ainda dependentes de um financiamento municipal (a câmara de Lisboa atribui 100 mil euros ao festival, mas ainda só pagou a primeira tranche de 50 mil - se tiver de avançar dinheiro para cobrir o este passivo, a associação não poderá avançar com os trabalhos). "Até aqui temos sido nómadas", diz Deputter, referindo-se às várias sedes da associação nos últimos 15 anos. "Agora queremos uma casa onde se possa receber os artistas que têm vindo a colaborar connosco, em residência, que nos ajude a definir um perfil para o trabalho que fazemos entre festivais [realiza-se de dois em dois anos], porque é nesse período que este lugar vai viver mais."
António Pinto Ribeiro, professor universitário e ensaísta considera o Alkantara "um projecto pensado e realizado a longo termo, de natureza trasnacional e cuja componente internacional apresenta o que de mais actual e pertinente existe na área da dança e da performance contemporâneas". E espera ver a nova sede transformar-se numa "plataforma de encontros" capaz de nos manter "ligados ao mundo" entre festivais, cujo programa, virado para as principais questões da actualidade, nomeadamente políticas, é "absolutamente pertinente".
"Não precisamos de construir mais espaços", defende Pinto Ribeiro, mas de gerir os que existem, criando "diversidades programáticas" e recuperando edifícios e salas já existentes para ensaios, produção e criação, "simples, eficazes, com pouca ornamentação, de preferência".
Quem percorre os corredores da nova sede do Alkantara sente que pode vir a ser um desses espaços. Atrás de uma pesada cortina aveludada, há cadeirões e poltronas preparados para a festa que hoje começa (há um bar em funcionamento durante o festival), candeeiros chineses de papel vermelho, cartazes empilhados. Nos escritórios e na bilheteira antecipa-se a agitação que se vai instalar nas semanas que se seguem. Na mezzanine, que dá acesso a uma casa de banho que parece saída de um filme passado numa fábrica dos anos 40 ou 50, é fácil imaginar bailarinos a ensaiar.
A falta de espaços de trabalho, acrescenta Vera Mantero, sempre foi, aliás, um dos grandes problemas da comunidade da dança em Lisboa. É por isso que a coreógrafa gostaria que o novo Alkantara se transformasse num lugar de encontro e reflexão para os artistas, com um fundo documental à disposição de todos que promovesse a discussão teórica sobre as artes performativas contemporâneas. No fundo, Mantero quer que mantenha o espírito do festival, "ligado às tendências mais actuais e experimentais da dança e do teatro".
A ideia, explica Mark Deputter, é abrir a casa aos artistas portugueses e estrangeiros, levando-os a outras zonas da cidade: "O centro artístico é o Chiado e o Bairro Alto. Ao escolher vir para aqui, baralhamos a geografia, levamos as pessoas a descobrir a cidade, a pensar nela de outra maneira." Definitivamente, a casa do Alkantara não quer ser um teatro. Quer ser muito mais.

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