Maria Antonieta
Na véspera dela nascer, milhares de pessoas morreram em Lisboa, vítimas do terramoto do Dia de Todos os Santos de 1755. Mas a notícia ainda não tinha chegado a Viena quando a imperatriz Maria Teresa deu à luz a décima quinta dos dezasseis filhos que teve entre 1737 e 1756. A imperatriz tinha 38 anos, exactamente a mesma idade com que morreu a famosíssima princesa que nasceu a 2 de Novembro de 1755.Porque me voltei eu hoje para a rainha de França? Ela surgiu-me quase tão inesperadamente como O Prisioneiro de Dallapicola, de que falei na crónica A Tortura pela Esperança (PÚBLICO, 4 de Maio de 2008). Sucedeu que, nessa mesma estada em Paris, fui pela primeira vez ao Petit Trianon, a última das grandes criações de Versailles, aliás agora em trabalhos de restauro, com conclusão prevista para o próximo Outono. Era um magnífico dia de primavera e deixei-me enfeitiçar pelos miosótis, pelos amores-perfeitos e pelos narcisos que se diz que eram perfumes favoritos da rainha. Alguém me recordou que miosótis em inglês se diz "forget me not" e de ti nada estava esquecido nesse jardim, também à inglesa, que Maria Antonieta mandou desenhar para apagar definitivamente a memória da última favorita de Luís XV, essa Du Barry que ela tão particularmente detestava.
Depois, alguém me disse que o mobiliário, os quadros e os objectos do Petit Trianon se achavam expostos em Paris, no Grand Palais, exposição de que me falaram como admiravelmente operática e admiravelmente cinematográfica, coisas que juntas se acham raramente.
Não sei se foram os miosótis, se foram os asfódelos, se foi a ópera, se foi o cinema que me convenceram. O que é certo é que, dois dias depois de Versailles e da tão inesperada excursão ao Trianon, eu estava a visitar a exposição, inaugurada a 15 de Março e visível até 30 de Junho, o que vivamente recomendo a quem for a Paris. É uma exposição deveras singular e assaz diferente do que costumam ser estas exposições "históricas".
Robert Carsen, um conhecido encenador teatral, coadjuvado por Nathalie Crinière, conceberam a encenação da mostra. Ouvi dizer que a dimensão teatral foi opção que surgiu por o teatro ser, de todas as artes, aquela que Maria Antonieta, desde criancíssima, mais amava, quando ela própria, com alguns dos irmãos e irmãs, entrou no bailado Il Trionfo d" Amore, ou, aos dez anos, na estreia da ópera de Gluck, Il Parnasso Confuso, representada na actual Sala de Cerimónias do Palácio de Schönbrunn.Seja como for, a exposição divide-se em três actos e o desígnio é sublinhado logo nas legendas iniciais. O primeiro acto é dedicado a Schönbrunn, onde Maria Antonieta viveu os primeiros quinze anos de vida, ou nem tanto, pois ainda não completara essa idade quando, a 21 de Abril de 1770, deixou a família e Viena para não mais regressar. Havia cinco anos - desde que o neto de Luís XV, o duque de Berry, assumira o delfinato por morte do pai - que o casamento estava a ser negociado entre o rei de França e a imperatriz da Áustria.
Parece que a princesa não dava muitos motivos de alegria aos seus preceptores e Luís XV escandalizou-se quando soube que ela falava francês com forte sotaque alemão e quase o não sabia escrever. Em 1768, um padre francês veio tratar da coisa e no ano seguinte escreveu ao seu embaixador: "Tenho a certeza que a nossa corte e a nação francesa vão ficar encantadas com a nossa futura delfina. A uma figura encantadora junta um carácter mui sedutor. Se amadurecer um pouco mais, como legitimamente se pode esperar, terá todos os trunfos desejáveis para uma princesa de tão alta estirpe. Tanto o carácter como a sensibilidade são notáveis e só lhe falta a facilidade de expressão, para mostrar o mesmo dom que a mãe possui de dizer sempre às pessoas as palavras mais amáveis". Maria Antonieta recebeu lições de música, de canto, de desenho e de costura.
Esse "primeiro acto" é dominado pelos retratos de família, e também por móveis, louças e pratas vindos de museus austríacos. Apesar de uma certa majestade, o traço dominante é lúdico. Se estamos perante a "Familia Augusta", como expresso no formidável retábulo dourado que a representa, dominado pela coroa do Sacro Império Romano-Germânico, pelas duas águias e pelo Tosão de Ouro, estamos perante uma família matriarcal, onde a imperatriz não esconde a sua preferência pela arquiduquesa Maria Cristina ("Mimi" para os íntimos) única filha nascida no mesmo dia da mãe e a única a quem Maria Teresa deixou escolher marido, na pessoa de Alberto, Duque de Saxe-Teschen, esse que veio a constituir a fabulosa colecção de gravuras hoje reunida na Albertina. Uxori Optimae, mandou gravar o marido na estátua-memorial que encomendou a Canova, quando ela morreu, em 1798.
Mas vendo os retratos de todos - individuais ou em grupo - prevalece um bizarro hieratismo que tanto parece um jogo como uma cena teatral. A metáfora da "caixa de bombons" vem à memória e está fortemente presente no primeiro retrato que de Maria Antonieta se conserva, ainda com o seu nome de baptismo cravado: ERZ HERZOGIN ANTONIA. Antonia toca cravo e volta para nós um rosto que parece ter muito mais que treze ou catorze anos, com a testa altíssima, os olhos muito azuis, o nariz perfeito e a boca minúscula (essa boca e esse queixo dos Habsburgos que os pintores franceses, mais tarde, tanto tentaram disfarçar).
À entrada, vem uma frase extraída de uma carta bem futura de Maria Antonieta: "Ce ne fut qu"un beau rêve". É uma instância onírica, levemente nostálgica, que domina esse primeiro acto da exposição.
O segundo - o mais vasto e o mais rico, tanto em peças como em invenções cenográficas - é que cobre os anos de Versailles, desde o casamento de Luís Augusto, Delfim de França, com a arquiduquesa já rebaptizada de Marie-Antoinette, a 16 de Maio de 1770, até à revolta que afinal era uma revolução. São 19 anos (1770-1789) em que o delfim e a arquiduquesa passaram a Luís XVI e a Marie-Antoinette, rainha, com a sagração em Reims, à morte de Luís XV em 1775. São os anos em que Maria Teresa morre em Viena, em 1780, sem rever a filha e em que decorrem os sete anos "brancos" do casamento real. Das razões para a impotência do rei, toda a Europa falava e, pelas cartas e pelos relatos, parece que tinham espiões no quarto nupcial. Maria Teresa zangou-se: como é que um homem novo (Luís XVI era apenas um ano mais velho do que a mulher) se mostrava insensível aos encantos desta, enquanto incitava claramente a filha a tomar a iniciativa. Mas a princesa não se queixa ou não parece queixar-se. Sentia-se adorada por todos, desde o rei ao "pobre povo" e não se enganava.
As últimas rainhas de França (as mulheres legítimas de Luís XIV e de Luís XV) tinham sido tudo menos bonitas e ninguém lhes notara juventude e alegria. Agora, pelo contrário, a rainha era belíssima, adorava divertir-se, organizava todos os dias novos espectáculos e novos jogos.
Ao fim de sete anos, em 1777, e depois de uma operação feita ao rei, Maria Antonieta, numa carta hoje surpreendente, comunica à mãe que o casamento deles se consumara finalmente e que, ainda na véspera, "l"épreuve" se tinha repetido.
Mas a criança, que nasceu a 20 de Dezembro de 1778, era uma rapariga, a futura "Madame Royale". Só em Outubro de 1781 - um ano depois da morte de Maria Teresa - nasceu o aguardadíssimo herdeiro. Depois mais dois filhos. O mais velho morreu aos 8 anos, em 1789, no ano da Revolução (mau presságio). O mais novo foi o malogrado Luís XVII.
Numa encenação em que os dois Trianons são brilhantemente recordados, é-nos dado o apogeu da rainha, ainda tão rigorosa que mandou destruir uma Vénus com a sua aparência, exibindo um filho, pois que o peito nu da deusa lhe parecia indecente provocação. Começou depois o luxo e o fausto do Trianon, como o novo gosto e as novas modas determinados pela rainha, que se fez mesmo pintar, para grande escândalo dos franceses, com chapéu de palha à inglesa. Começaram os boatos sobre as suas ligações, hetero e homossexuais, e as campanhas contra os seus gastos exorbitantes, presentes nos serviços de Sèvres, no seu célebre "gabinete dourado", nas "glaces mouvantes", nas lacas (paixão que herdou da mãe), nos cofres, cadeirões e tapeçarias.
Veio a época Vigée Le Brun, do nome da pintora que mais a pintou e, no fim, quase sempre como mãe, para tentar contrariar a imagem frívola que dela crescentemente se formava. A "princesa do conto de fadas", "la reine adorée" transformou-se em "Madame Deficit", causadora da dívida da França. Vem o célebre episódio do "colar da rainha", que hoje se sabe ter sido intriga tenebrosa, mas a colecção de cristais de rocha, "pedras duras", jades e jaspes é impressionante. Finalmente, uma noite no Templo do Amor, no Petit Trianon, com o fogo de artifício. No fim, relativamente isolado, o célebre relógio conhecido como Pendule à la Négresse, porque encimado pela cabeça de uma negra, com dois grandes brincos nas orelhas. Puxando um, as horas surgiam no olho direito, puxando outro os minutos viam-se no olho esquerdo. O tempo a passar num abrir e fechar de olhos.
Chegado aí, pareceu-me que a exposição tinha acabado, o que era manifestamente impossível. Perguntei a um guarda e ele apontou-me uma estreita escada de caracol, que era preciso descer e com alguma dificuldade se descia.Cá em baixo, muito em baixo, um enorme corredor todo negro. Na parede do lado direito, com uma iluminação discreta, como se estivéssemos a olhar para o interior de um aquário, as gravuras revolucionárias, com os insultos à "austríaca", à "família dos porcos", ou o anedotário sobre a fuga de Varennes. Na parede do lado esquerdo, pequenos enquadramentos permitiam ler excertos das últimas cartas da rainha. Desde aquela em que chama ao conde sueco (Von Fersen) "o mais amante e o mais amado dos homens" e lhe diz que ainda acredita numa salvação, até à ultima carta, escrita à cunhada, em que lhe pede que diga aos filhos que acima de tudo não tentem vingar os pais mas restabeleçam a paz no perdão.
No fim do percurso, no fundo da sala, o célebre desenho de David, que eu nunca tinha visto "ao vivo", traçado no dia da execução (16 de Outubro de 1793, nove meses depois do rei) mostrando "a viúva Capeto", de mãos atadas atrás das costas, uma touca na cabeça, e umas farripas de cabelos à mostra. Mas a mesma altivez na fronte.
Saí com os acordes de Gluck nos ouvidos. A ária do Orfeu que se ouve durante todo o final do percurso. "Che farò senza Euridice?" ou, em francês como se deve, "J"ai perdu mon Eurydice".