Carta de Einstein sobre a sua visão de Deus é hoje leiloada

O físico escreveu a um filósofo em 1954, dizendo que a Bíblia é uma colecção de "lendas primitivas"
e "bastante infantis"

a Aos 11 anos, Einstein, ícone do génio humano, autor da teoria da relatividade e de uma das equações mais famosas, a elegante E=mc2, passou por fase de grande religiosidade. Era judeu e, apesar de os pais não serem praticantes, teve educação religiosa, como exigia a lei bávara na altura. Um parente distante deu-lhe então lições de judaísmo em casa e, mais tarde, essa educação continuou na escola, em Munique, até que, em 1890, algo sucedeu. "Como resultado dessa infusão, aos 11 anos entrou numa fase de intensa religiosidade. Os seus sen-timentos eram tão fervorosos que seguia os preceitos religiosos em pormenor, não comendo por exemplo carne de porco", contava o biógrafo de Einstein, o físico Abraham Pais, no livro Subtil é o Senhor (Gradiva).
O fervor religioso de Einstein durou um ano, para nunca mais voltar a senti-lo. Depois, muito se escreveu sobre a sua relação com a religião. Era religioso? Acreditava em Deus?
"Mais tarde, confessaria a um amigo íntimo que durante esse período tinha composto várias canções em honra de Deus, que cantava entusiasticamente na ida para a escola", revelava ainda Abraham Pais, já falecido. "Este período chegou abruptamente ao fim em virtude da exposição à ciência. Não fez o "bar mitzvah". Nunca dominou o hebreu." Aos 50 anos, escrevia ao antigo professor de religião dos tempos do liceu, dizendo-lhe: "Leio frequentemente a Bíblia, mas o texto original continua a manter-se inacessível."
A culpa pela reviravolta de Einstein foram os livros de divulgação científica, de filosofia e um livrinho sobre geometria euclidiana, a que chamava "o livro sagrado da geometria".
Mas ao longo da vida, por várias vezes, Einstein falou de religião. Em 1930, num artigo que escreveu para a New York Times Magazine, depreende-se que não acreditava num Deus pessoal, antropomórfico, que recompensava e punia; falava, antes, da existência de um "sentimento cósmico religioso". Em 1929, dissera ao rabi Herbert Goldstein: "Acredito no Deus de Espinosa, que se revela a si próprio na harmonia das leis do Universo, e não num Deus que se preocupa com o destino e com o que a humanidade faz."
Via-se como agnóstico, não como ateu. Mas a ideia de um "sentimento cósmico religioso" ou uma frase que proferira num simpósio sobre ciência e religião, em 1941, originaram o debate sobre a sua relação com a religião: "A ciência sem religião é coxa, a religião sem ciência é cega."
Há quem interprete outra célebre frase de Einstein ("Deus não joga aos dados") como prova da sua crença num ser superior. Muita gente, porém, interpreta-a tão-só como a sua recusa em aceitar que as leis do Universo se baseassem em probabilidades estatísticas, como diz a teoria quântica para o mundo das partículas.
Uma missiva pouco subtil
Agora, uma carta, em mãos privadas há mais de 50 anos, permite revelar um pouco mais do pensamento do físico sobre Deus, a religião e os judeus, pelo que tem suscitado grande curiosidade, como noticiou o jornal britânico The Guardian. Hoje, vai ser leiloada em Londres pela Bloomsbury Auctions.
Escreveu-a, em alemão, a 3 de Janeiro de 1954, um ano antes de mor_
rer, aos 76 anos, da ruptura de um aneurisma na aorta. Dirigiu-a ao fi-
lósofo Eric Gutkind, que lhe tinha enviado um exemplar do seu livro Choose Life: The Biblical Call to Revolt. Uma das passagens é esta: "A palavra "Deus" para mim não é nada mais do que uma expressão e um produto da fraqueza humana, a Bíblia, uma colecção de honradas mas primitivas lendas, que são bastante infantis".
Einstein rejeita também a ideia de que os judeus são um povo eleito por Deus. "Para mim, a religião judaica, tal como todas as outras, é uma en-
carnação das superstições mais infantis. E o povo judeu, ao qual estou contente por pertencer e por cuja mentalidade tenho profunda afinidade, não é diferente de qualquer outro povo para mim."
Einstein - que, em 1952, recusou o convite para ser Presidente de Israel, criado em 1948 - acrescentou ainda: "Tanto quanto a minha experiência permite, [os judeus] não são melhores do que outros grupos humanos, apesar de estarem protegidos dos pi-
ores cancros pelo facto de não terem poder. De outro modo, não vejo neles nada de "escolhido"."
John Brooke, especialista em Einstein de Oxford, nunca ouviu falar da carta. Para Brooke, citado pela agência The Canadian Press, Einstein acre-
ditava na existência de "alguma inteligência na natureza": "Não era certamente a visão convencional cristã ou judaica".
Seja como for, Einstein continuará na memória colectiva como o físico desgrenhado, com sentido de humor e ar simpático, que revolucionou a nossa visão do Universo ao perceber que a energia e a matéria são duas faces da mesma moeda, formulando, em 1905, a célebre equação da teoria da relatividade restrita. Nela resume-se a natureza, do Big Bang ao Sol e à bomba nuclear, mas seria a explicação do efeito fotoeléctrico, também em 1905, a dar-lhe o Nobel da Física em 1922.
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mil libras esterlinas, ou dez mil euros, é quanto se espera que atinja, no mínimo, a carta de Einstein hoje posta à venda

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