Passou um pouco discretamente pelas salas portuguesas, porventura demasiado discretamente, o outro filme de Abdellatif Kechiche por cá estreado. Chamava-se "A Esquiva", e era a segunda longa-metragem deste cineasta francês de origem tunisina (nasceu em 1960 em Tunis, e foi muito jovem para França). Marivaux no "banlieue" parisiense, o mesmo "banlieue" que não muito tempo depois ficaria em brasa, "A Esquiva" era um originalíssimo olhar sobre a condição dos adolescentes de segunda (ou terceira) geração da imigração magrebina, um olhar que conseguia estar "dentro" sem por isso perder uma perspectiva, e limar estereótipos sem entrar num discurso meramente pedagógico ou apologético. Tivesse "A Esquiva" dado mais nas vistas e talvez houvesse mais gente à espera deste "O Segredo de um Cuzcus" ("La Graine et le Mulet", no original), filme que aguardávamos com alguma expectativa e muita curiosidade.
Estamos agora em paragens mais mediterrânicas. A cidade portuária de Sète, para sermos exactos. "O Segredo de um Cuzcus" é a história de Slimane, homem de 50 e tal anos que passou a vida nos estaleiros locais a construir traineiras mas chegou a uma altura em que o estaleiro já não precisa dele (até porque está disponível "mão de obra" mais barata e mais facilmente descartável). Mas para Slimane, homem com olhos de herói cansado, a reforma significa a oportunidade de concretizar um sonho que é também uma derradeira aposta de vida: abrir um barco-restaurante na zona do porto, apoiado nos dotes culinários da mulher (ou ex-mulher, estão separados), que faz um excelente cuzcus, e na boa vontade da restante família (as filhas e os filhos, as noras e os genros, a namorada e a enteada).
Kechiche filma duma maneira que deve muito à chamada "tradição realista francesa", no que ela tem de mais refinado. Há uma reverberação muito palpável de tudo o que é "físico", sejam os corpos dos actores seja a geografia propriamente dita, que Kechiche deixa banhar na "clássica" indolência do Midi (mas sem "pitoresco"), como se por vezes estas personagens parecessem ser (em moldes certamente muito distintos) "reinvenções" das figuras de Marcel Pagnol.
Filme sobre a família, na sua dimensão mais vasta, mais tensa mas mais solidária, como filme sobre o "petit commerce", sobre o pequeno empresariado que tenta encontrar um lugar num mercado hostil e movido por fortíssimos instintos de auto-protecção (as cenas e apontamentos "burocráticos"), "O Segredo de um Cuzcus" acrescenta a estes termos, na segunda parte (a magistral, e longuíssima, sequência da inauguração do restaurante), o acaso e a (má) sorte, e a perseverança como condição de sobrevivência. Tudo começa a correr mal, pelas mais inesperadas razões - e Slimane e os seus vêem-se obrigados a remediar, a improvisar, a dar pequenos saltos em frente de desfecho imprevisível. É uma sequência admirável, em que o tempo se dilata e se prolonga, e os espaços da acção se multiplicam (montagem paralela, "beau souci"), com Kechiche em perfeito domínio dos mecanismos da angústia, algures entre o "last minute rescue" griffithiano e o "suspense" hitchcockiano. Não esqueceremos depressa as aventuras de Slimane e do seu cuzcus, mesmo que o filme mantenha em segredo (no seu final inconclusivo) o destino de um e de outro.