É um réptil? Uma ave? Não, é um ornitorrinco
Em parte réptil, em parte ave, em parte mamífero, é dos animais mais estranhos. Tamanha miscelânea de características fascinou os naturalistas dos séculos XVIII e XIX. Através dos genes, mais de uma centena de cientistas confirma agora que ele é um bocadinho daquilo tudo
a Põe ovos, como as aves e os répteis. Amamenta as crias, como os mamíferos. Produz veneno, como as serpentes. Tem um bico e membranas nas patas, como os patos. O ornitorrinco é uma manta de retalhos, uma quimera natural, que reúne traços morfológicos de várias criaturas. O que esconderá o mais íntimo da sua natureza, o seu ADN?Um consórcio de mais de 100 cientistas descodificou o genoma do ornitorrinco e publica hoje, na revista Nature, a primeira análise genética deste animal: de facto, os seus diversos traços estão estampados numa manta de retalhos genética, feita com genes parecidos com os dos répteis, das aves e de outros mamíferos.
Apesar desta mistura de características, o ornitorrinco é classificado como mamífero, porque está forrado por um belo casaco de pêlo, adaptado às águas geladas onde vive, e produz leite, com que amamenta os filhos. Mas pertence a um grupo de mamíferos com poucos representantes actuais - os monotrématos, nome que significa "um só orifício" (têm uma abertura para o exterior comum aos aparelhos digestivo, urinário e reprodutor). Os equidnas, outros dos raros mamíferos que põem ovos, estão incluídos neste grupo.
No século XIX, uma das controvérsias sobre o ornitorrinco era se poria, ou não, ovos como as aves e os répteis. Em 1883, o jovem naturalista escocês William Caldwell embarcava para a Austrália com missão de determinar como é que se reproduzia o ornitorrinco, endémico do Leste da Austrália e da Tasmânia. Seria mesmo um mamífero que punha ovos?
Em 1884, Caldwell encontrou uma fêmea que tinha acabado de pôr o primeiro ovo e ainda mantinha o segundo na tal abertura comum para o exterior. Enviou então um telegrama para a British Association, com uma frase que ficaria famosa no meio científico: "Monotrématos ovíparos, ovo meroblástico [ovo que se divide de forma incompleta após a fertilização]." Ao descobrir como se reproduz o ornitorrinco, Caldwell garantia um lugar na história da zoologia.
Os ovos desenvolvem-se dentro das fêmeas durante 21 dias, ao fim dos quais elas os enterram no chão. Onze dias depois eclodem e as fêmeas passam quatro meses a alimentar as crias. O leite não é sugado em mamilos, porque as fêmeas simplesmente não os têm, mas por poros na pele, no meio da pelagem da barriga.
Os machos, por seu lado, estão equipados com um sistema de protecção único. Apenas uma meia dúzia de mamíferos têm veneno, só que o ornitorrinco é singular na forma como o aplica às vítimas - com espigões nas patas traseiras, em vez de mordidelas. "Apesar das dificuldades óbvias em obter amostras, sabe-se agora que o veneno do ornitorrinco é um cocktail de pelo menos 19 substâncias diferentes", relata a equipa na Nature.
Acharam que era embuste
Uma mandíbula semelhante a um bico de pato está na origem do seu nome científico: Ornithorhynchus quer dizer "focinho de ave". Quando anda debaixo de água em busca de presas, pequenos invertebrados aquáticos, entre outras, fecha os olhos, as orelhas e narinas e localiza o alimento através de sinais eléctricos transmitidos na água, graças a um sensor no bico. Já que estamos em descrições, é desdentado.
"É esta amálgama de particularidades reptilianas, avianas e mamiferóides que contribui para que este monotrémato desempenhe um papel quase mitológico no imaginário colectivo", afirma o paleontólogo Luís Azevedo Rodrigues, do Museu Nacional de História Natural de Lisboa, no seu blogue Ciência ao Natural. "Num dos capítulos de A Feira dos Dinossauros, do paleontólogo e historiador de ciência Stephen Jay Gould, faz-se a resenha histórica de como os naturalistas dos séculos XVIII e XIX observaram o ornitorrinco. Primitivo, ineficiente e imperfeito foram alguns dos adjectivos utilizados para descrever o mamífero australiano", acrescenta Luís Rodrigues.
Para aqueles cientistas, refere o paleontólogo português, a natureza apresentava divisões claras na sua diversidade de formas, que resultariam da sabedoria divina. "A miscelânea morfológica do ornitorrinco originava acesos debates não só biológicos, mas também teológicos."
Aliás, o primeiro exemplar empalhado que chegou à Europa foi considerado um embuste pela comunidade científica, tal era o aspecto paradoxalmente bizarro que o ornitorrinco apresentava.
Viagem ao passado
Os cientistas de hoje, munidos de poderosas técnicas de análise do ADN, passaram a pente fino o genoma de Glennie, uma fêmea, que descodificaram no Centro de Sequenciação da Universidade de Washington em St. Louis (EUA) e compararam com o da galinha e de outros mamíferos (humanos, ratinho, cão e opossum).
De todos os mamíferos, o ornitorrinco é o que se encontra mais distante dos humanos. Ele e nós partilhámos um antepassado comum há cerca de 170 milhões de anos.
Os humanos têm cerca de 30 mil genes, os ornitorrincos cerca de 18.500. Nos humanos há 46 cromossomas (22 pares, mais dois cromossomas sexuais herdados do pai e da mãe), nos ornitorrincos 52, incluindo dez sexuais (cinco Y e cinco X). Como ocorre a determinação do sexo é um dos mistérios que se mantém, considera a equipa. Nenhum dos cromossomas X do ornitorrinco é parecido com os cromossomas X dos humanos, ratinho ou cão. As semelhanças vão mais para o cromossoma sexual das aves, conhecido por Z ("Não esperávamos isto", conta Jenny Graves, da Universidade Nacional Australiana).
"A organização do seu genoma é estranha, um pouco inesperada até. Parece-se mais com as aves e os répteis do que com os mamíferos, apesar de estar classificado como mamífero. É um animal que permaneceu relativamente primitivo e imutável, tanto na aparência física como geneticamente", diz Mark Batzer, da Universidade Estadual do Louisiana, nos EUA.
Agora, os cientistas tencionam encontrar mais pistas sobre a evolução dos mamíferos, através da comparação do genoma do ornitorrinco com os genomas de outros mamíferos. "À primeira vista, o ornitorrinco parece um acidente evolutivo. Mas por mais estranho que pareça, o genoma deste animal é de valor incalculável para compreender a evolução dos mamíferos", frisa Francis Collins, director do Instituto Nacional de Investigação do Genoma dos EUA.
"Enquanto os mamíferos posteriores perderam as características reptilianas, o que é único no ornitorrinco é ter retido uma grande sobreposição destas duas classificações muito diferentes", adianta outro cientista da equipa, Wes Warren. "É o nosso bilhete de viagem para o passado, quando todos os mamíferos punham ovos e alimentavam os filhos com leite", remata Chris Ponting, da Universidade de Oxford, no Reino Unido.
Apesar de ser relativamente comum na natureza, o ornitorrinco recebeu o estatuto de espécie vulnerável. A degradação do habitat pelo homem e as alterações climáticas são as principais ameaças sobre a cabeça desta criatura que, além de tudo o resto, ainda é extremamente tímida.