Poderá o África Festival voltar?
A EGEAC cancelou o festival de música africana que existia há três anos nas festas da cidade
e que trouxe nomes como o maliano Ali Farka Touré. Mas os fãs da world music garantem
que há espaço para um festival deste tipo - mesmo que deixe de ser gratuito
a O anúncio da programação das Festas de Lisboa, na semana passada, foi para Paula Nascimento a confirmação oficial e pública daquilo que já sabia há vários meses: o África Festival, um dos acontecimentos integrados naquelas festas organizadas pela Câmara Municipal de Lisboa (CML), não se realiza este ano. "Não cheguei a perceber o que falhou", diz a directora e programadora das três edições do festival (2005, 2006 e 2007). Segundo Paula Nascimento, foi no final da última edição, em Julho do ano passado, que a anterior administração da EGEAC (Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural, da CML), presidida por José Amaral Lopes, lhe entregou uma carta afirmando que "o modelo [do festival] encontra-se esgotado". Amaral Lopes explica agora que o que essa expressão significava era que o festival "tinha que ser reestruturado e alterado" e garante que "nunca foi decidido acabar com o África Festival". "Houve algumas queixas, e tivemos, inclusivamente, propostas de participantes e produtores para melhorar algumas coisas", diz o antigo responsável das EGEAC.
Mas, entretanto, houve eleições para a câmara e a administração da EGEAC foi substituída. E o actual presidente do conselho de administração, Miguel Honrado, avança com outro argumento: "Seria impossível realizar o festival este ano por razões financeiras." A EGEAC, explica, "teve uma redução de financiamento de mais de 50 por cento em termos da dotação da CML, e isso teve que ser traduzido em cortes na programação".
Modelo mais económico
Por isso, as Festas de Lisboa 2008 foram repensadas num modelo mais económico - nomeadamente sem os grandes concertos na Torre de Belém, aos quais o África Festival estava associado, utilizando os mesmos meios logísticos. "É a programação possível dentro do quadro financeiro possível." Não está em causa a qualidade do África Festival, diz Miguel Honrado. "Não me parece que seja um modelo esgotado, e mesmo quando os modelos estão esgotados podem-se encontrar soluções de renovação." Infelizmente, acrescenta, "prevê-se que para 2009 o enquadramento financeiro seja o mesmo que o deste ano".
Paula Nascimento diz compreender o argumento das restrições financeiras, mas não aceita a ideia de que o modelo esteja esgotado. "O África Festival veio criar novos públicos, abrir as portas para um universo pouco conhecido, interessou à comunidade africana, mas também a pessoas fora desta comunidade", afirma. Além disso, acrescenta, o festival começava a ser reconhecido a nível internacional, com referências no El País, na revista Les Inrockuptibles ou na BBC Radio 3.
A programadora garante que nas três edições os espectáculos de música ao ar livre tiveram uma média de dez mil pessoas por dia, e em 2007 - ano em que houve, pela primeira vez, sessões de cinema, uma exposição de fotografia e o lançamento de um livro - o cinema São Jorge, que recebeu essas iniciativas, "contabilizou 5738 presenças numa semana" (neste caso os números são mais precisos, porque, apesar de gratuitos, era necessário levantar bilhete, o que não acontecia com os concertos ao ar livre).
Vasco Sacramento, director do festival Sons em Trânsito, em Aveiro, e Raquel Bulha, que tem um programa na Antena 3 dedicado à world music, eram dois dos frequentadores do África Festival, cujo cancelamento, dizem, "deixa um vazio nesta área em Lisboa". "É evidente que faz muita falta", diz Vasco Sacramento. "Lisboa é neste momento uma cidade com um potencial de multiculturalidade muito elevado" e isso devia ser melhor aproveitado.
Cultura paga
O festival "fazia parte da primeira divisão da world music em Portugal, com o Sons em Trânsito, o Festival de Sines, o MED de Loulé e o Festival Mestiço da Casa da Música", sublinha Vasco Sacramento. "Se desaparece, é o fim de um elemento fulcral deste quinteto e o principal em Lisboa."
Raquel Bulha considera "incompreensível que não se incentive e agarre um projecto destes, que é de uma importância extrema" em Lisboa. Tanto Bulha como Sacramento recordam que foi no África Festival que assistiram a um dos concertos das suas vidas: o de Ali Farka Touré, naquela que foi uma das últimas actuações ao vivo daquele músico do Mali (no Auditório Keil do Amaral, em Monsanto, antes de os concertos passarem para a Torre de Belém). Pelo festival passaram também, entre outros, Baaba Maal, Oumou Sangaré, os Tinariwen, Bassekou Kouyaté & Ngoni Ba e Mayra Andrade.
Paula Nascimento lamenta que a suspensão tenha acontecido precisamente no Ano Europeu do Diálogo Intercultural (a EGEAC centrou-se este ano em iniciativas ligadas ao povo cigano) e admite a possibilidade de, no futuro, o África poder ter espectáculos pagos, apesar de a sua ideia inicial ser a de conquistar primeiro um público fiel. Miguel Honrado, da EGEAC, considera que mesmo assim os constrangimentos financeiros não seriam ultrapassados, porque "o investimento neste tipo de iniciativas é sempre muito superior ao retorno".
Mas Vasco Sacramento defende que o caminho só pode ser esse: "Os festivais têm que se pagos. O caminho é a auto-sustentação, até para a dignificação do evento." Raquel Bulha concorda: "A cultura deve pagar-se, mesmo que seja um pagamento modesto." E não tem dúvidas de que "existe um público disposto a pagar" para ter um festival de música do mundo em Lisboa.