Uma peça-ícone
Quando Pina Bausch está em palco os olhos dificilmente se desviam do seu corpo magro, dos seus braços compridos de mãos grandes. Ela é um espectro neste Café Müller icónico, negro, duro. Em Nefés, ela é mais luminosa. O festival Pina Bausch continua até dia 9 no Teatro S. Luiz e no Centro Cultural de Belém.
Por Paulo Pimenta (fotos) e Lucinda Canelas (texto)
Café Müller é ela. É Pina Bausch que seguimos quando as luzes se acendem, é Pina Bausch que procuramos quando elas se apagam. Durante 45 minutos, a coreógrafa alemã que nos habituámos a ver com calças e casacos pretos no papel de directora do Tanztheater Wuppertal, contida e quase sempre em silêncio, dá lugar à bailarina de cabelos longos e braços compridos, com um corpo incrivelmente magro, coberto por um negligé branco que toca o chão. É a mesma, mas diferente. Move-se de olhos fechados entre as cadeiras que Rolf Borzik usou para recriar o ambiente de um café. À sua volta há outros bailarinos, mas Bausch não chega a tocar-lhes (a não ser quando Nazareth Panadero lhe veste um sobretudo). Em Café Müller, ela permanece sozinha e sem palavras. É assim que a imaginamos quando ela explica por que razão se tornou bailarina quando era ainda criança: "Adorava dançar porque tinha medo de falar." Ainda é assim. Do elenco original de 1978, apenas Bausch (quase 68 anos) e Dominique Mercy - um dos bailarinos mais expressivos do universo bauschiano - se mantêm. Mercy e Azusa Seyama formam o par que se abraça e se beija furiosamente em Café Müller. São eles os protagonistas de uma das histórias a que assistimos nesta peça-ícone que marcou profundamente a dança e o teatro contemporâneos.
Café Müller continua a ser especial para a companhia e para Bausch. É como uma prenda que dá a si mesma, diz ela. É uma prenda que nos dá, dizemos nós.
De olhos fechados, Pina Bausch percorre as paredes do café que Rolf Borzik criou. Ele - como ela - paira sobre aquele espaço, só que Bausch continua visível, e Borzik é apenas uma memória. O cenógrafo, que foi o companheiro da coreógrafa alemã quando o Tanztheater Wuppertal estava ainda longe de ter o reconhecimento mundial que tem hoje e que foi decisivo para a formação da personalidade da companhia alemã, marcando para sempre a vida de Bausch, morreu em 1980. É porque o sente mais perto quando dança em Café Müller que ela ainda sobe ao palco. É a única peça das mais de 40 criações em que o faz.
Nefés começa nos banhos e é por lá que passa várias vezes, durante mais de duas horas de espectáculo. A água está sempre entre os 20 bailarinos que Pina Bausch usa para criar um lugar luminoso que parte de uma residência em Istambul e que nos leva para longe. Entre os espaços públicos - como o concorrido bazar da cidade - e os privados, onde encontramos homens e mulheres e as suas (habituais) falhas de comunicação.
Nefés é uma das mais recentes produções do Tanztheater Wuppertal inspiradas em cidades. Mazurca Fogo, a que Bausch fez a partir de Lisboa, pode ser vista no CCB até sexta.