Caroline de Bendern
a Os revolucionários veneram símbolos e multidões. A revolução é uma mitologia, e a mitologia também consiste em adequar uma realidade a uma ideia. Pensemos em Caroline de Bendern, a "Marianne" do Maio de 68. Uma rapariga loura de cabelo curto (ou apanhado?), pescoço e feições esculturais, braço direito em volta da cintura, casaquinho com botões, sentada aos ombros de um homem que não vemos, agitando uma bandeira vietnamita. É a mais memorável das raparigas de 1968, uma Julie Christie da rue Saint-Antoine. Uma mulher revolucionária é uma coisa, mas uma mulher bonita é sempre outra coisa.Toda a gente já viu esta "Marianne", símbolo vivo da "revolução" (com aspas) de Maio, herdeira da outra Marianne, símbolo decrépito da revolução (sem aspas) de Julho. A agitação de rua não chega: é preciso o combate do imaginário. Os revolucionários de 1789 congeminaram uma beldade de maminhas soltas e barrete frígio, que se fez virtude em estátua e propaganda universal. Os revoltados de 1968, mais uma vez encabeçados por homens, também precisavam do seu rosto feminino. E nenhum outro ficou na memória como o de Caroline de Bendern. Ela foi capa de revista em todo o mundo, e ainda hoje é o mais belo poster da revolta parisiense.
Curiosamente, Caroline não passava de uma figurante naquela comédia. Não era francesa, nem estudante, nem trabalhadora, nem especialmente politizada. E (não se choquem) fez pose. Em Maio de 1968, Caroline tinha 27 anos. Inglesa, era neta do Conde de Bendern, e uma neta problemática. Andou por várias escolas internas inglesas, de onde foi sendo expulsa, depois mandaram-na para Viena, onde se meteu na boémia, e acabaram por lhe cortar a mesada. Então foi para Paris e Nova Iorque, e trabalhou como modelo. Caroline era uma rapariga do seu tempo, e dizia aquelas coisas vagas contra "a sociedade" e a favor da "mudança". À Normandie Magazine confessou em 1997: "Estava-me nas tintas para a política francesa, porque estava preocupada com a humanidade inteira." Nada mais inócuo do que estar preocupado com toda a humanidade.
Como é que esta jovem mulher se torna a Joana d"Arc do Maio vermelho? Ela ia no meio da multidão que marchava em direcção à Bastilha (os símbolos, os símbolos) e já lhe doíam os pés (é o que ela conta). Então alguém lhe pede que salte para os ombros de um rapaz e segure uma bandeira. A boleia era bem vinda. A questão da bandeira parecia mais complicada: "Não queria nem a bandeira vermelha - por causa dos comunistas que sabotavam o movimento - nem a bandeira negra, porque não sabia nada dos anarquistas. Mas a bandeira vietnamita convinha-me como símbolo de uma guerra que toda a juventude denunciava. De repente, sinto várias objectivas fixadas em mim." Nada a que uma modelo não esteja habituada: "Então tive como que um reflexo profissional. Instintivamente, endireitei-me, o meu rosto torna-se mais grave, os meus gestos mais solenes. Quis a todo o custo ser bela e dar uma representação daquele movimento à altura do momento."
Se os namorados de Doisneau, naquele famoso Baiser de l"Hôtel de ville também estavam ensaiados, como é que uma modelo ia fazer diferente? Ela admite: "No fundo, fiz pose. E fui armadilhada por essa pose. Porque de repente emocionei-me: esta multidão que se junta, justa, ardente, luminosa, com todas aquelas bandeiras, e este símbolo tão pesado na minha mão. Torno-me exactamente o que tento parecer. Já não represento nenhum papel, estou mergulhada no movimento e no instante, e consciente, eu que sou uma aristocrata inglesa, de uma responsabilidade." O avô conde, como é próprio dos avós condes, não se comoveu nada com as multidões ardentes: rasgou o testamento e disse à neta que não lhe aparecesse mais à frente. Caroline trocou a aristocracia do título pela aristocracia da celebridade, e convenhamos que há "armadilhas" mais graves. Hoje, diz que nunca se arrependeu do Maio. Quando muito, digo eu, está arrependida de não ter pedido royalties.