O diabo teceu-as
Hector Berlioz começou a escrever La Damnation de Faust nos anos 40 do século XIX, numa viagem pela Áustria, Hungria, Boémia e Silésia. O Fausto de Goethe, obra que Berlioz admirava desde a sua juventude, serviu de base à composição desta grande obra para coro, orquestra e quatro cantores solistas. "Não queria traduzir nem imitar a obra-prima, mas apenas inspirar-me nela e extrair a substância musical que ela contém", escreveu Berlioz explicando a génese da obra.O interesse pelo personagem de Fausto (não apenas o de Goethe) era coisa antiga. Dezoito anos antes desta obra danada, em 1828, Berlioz tinha já escrito uma peça intitulada Oito cenas do Fausto. Mas desta vez o projecto era ainda mais ambicioso. Berlioz escreveu simultaneamente a música e o libreto, adaptando livremente cenas d" O Fausto. É o próprio Berlioz que conta nas suas memórias como escrevia "quando podia e onde podia". Imaginemos então por momentos Hector Berlioz em carripanas e combóios, nas paisagens da Hungria ou viajando em barcos a vapor a escrever esta partitura, que havia de terminar finalmente em Paris em 1846. O resultado foi uma obra estranha, excessiva e ambiciosa, que alarga as possibilidades expressivas da orquestra ao mesmo tempo que põe a música a dialogar com a literatura e com as imagens.
Na Gulbenkian, a interpretação dirigida pelo maestro John Nelson La Damnation de Faust soou grandiosa e negra. O maestro propôs uma leitura muito viva e nada neutra da obra de Berlioz. Puxou pelos contrastes, exagerou onde era preciso exagerar, para trazer ao público que quase encheu a sala do Grande Auditório a verdadeira dimensão espectacular e quase provocatória da obra de Berlioz. Nem tudo foi perfeito (a voz da excelente meio-soprano Nora Gubish fraquejou nalguns agudos, por exemplo, e nem sempre teve dimensão para acompanhar a brutalidade orquestral), mas o essencial passou, graças à força do coro e às justas explosões da orquestra. E o essencial era ouvir e sentir na pele o impacto brutal de uma obra desvairada e gótica, negra e brilhante, divina e infernal. O romantismo de Berlioz é mesmo danado: nada de coisas "românticas" inofensivas - mesmo quando se fala de amor, as carícias são de fogo e a paixão é mortífera e diabólica.
Fala-se no diabo e ele aparece: Mefistófeles (Williard White) começou com agudos esforçados mas depois aqueceu e mostrou ser um cantor excelente, muito seguro e comunicativo. Diabólico, como convinha. O tenor Paul Groves esteve muito bem no papel de Fausto e teve o que faltou a Nora Gubish, uma projecção de voz potente e descontracção em palco. Sem estrelatos.
A música de Berlioz é que foi a estrela. Uma música excessiva, violenta, louca, desequilibrada (ainda bem, neste caso). Música de efeitos orquestrais e corais sensacionais, sempre sugestiva e provocante. Música com imagens. E ainda não havia cinema: Fausto vai com Mefistófeles depois de assinar o infernal pacto. Vão a galope, montados em cavalos negros. A música galopa também. Há monstros horrendos e aves nocturnas nos metais e nas cordas. Chove sangue. Os esqueletos riem e dançam.
Pedro Boléo