Isabel I queria ser a rainha de todos os ingleses
Na biografia A Rainha Pirata, que irá para as livrarias na próxima semana, a historiadora norte-
-americana Susan Ronald lança um novo olhar sobre Isabel I. Para este trabalho baseou-se em fontes históricas originais e cartas pessoais entre a rainha de Inglaterra e os seus mercadores
e conselheiros. História de ganância, poder, intriga e pilhagem numa corte muito especial
a Os seus intelectuais levaram a Renascença à Inglaterra, fazendo progredir a sociedade e o pensamento muito para lá do que teria sido julgado possível no tempo de Henrique VIII. John Dee viajou por toda a Europa, fazendo amigos humanistas no estrangeiro, como o fenomenalmente dotado cartógrafo Gerard Mercator. De regresso a Inglaterra, pregou aos já mais do que convertidos aventureiros de Isabel, falando de grandes riquezas e de mundos longínquos que poderiam tornar seus, se ousassem. De uma perspectiva espanhola, os ensinamentos de Dee eram anátema. O mundo tinha sido dividido entre portugueses e espanhóis, no século anterior, numa partilha sancionada pelo papa e consagrada no Tratado de Tordesilhas, de 1494. Quaisquer viagens de descoberta eram do domínio exclusivo dos dois países ibéricos, e foi este preceito, aliado à necessidade de sobreviver economicamente e de se precaver contra a Espanha, que serviu de catalisador à entrada da Inglaterra no mundo do poder expansionista. Na realidade, a expressão "Império Britânico" não foi cunhada nos séculos XVIII e XIX, mas sim por John Dee na sua obra The Petty Navy Royal, em 1577.Da perspectiva espanhola e portuguesa, o império era o princípio fundamental na batalha para proteger os "direitos" ibéricos. Do ponto de vista inglês, quaisquer actos de pirataria, comércio ou guerra eram os ingredientes básicos necessários para sobreviver contra as grandes potências católicas. E estes ingredientes situar-se-iam no cerne da confrontação entre Espanha, França e Inglaterra durante a maior parte do reinado de Isabel. Seria, no entanto, errado ver Isabel como uma imperialista.
Mercadores e fidalgos
O lugar da Inglaterra na História seria, em última análise, assegurado por uma Renascença inglesa no pensamento, na ciência e nas artes encabeçada por homens como Dee, Marlowe e Shakespeare. Já o direito de Isabel de governar uma Inglaterra protestante - e de lançar as sementes do império - foi assegurado pelos seus muitos mercadores e fidalgos aventureiros através do negócio, da pilhagem e da colonização. (...) Dez anos depois da ascensão de Isabel ao trono, o esbater das distinções entre mercadores e fidalgos tornara-se a norma aceite. A confusão entre comércio legal e pilhagem ilícita tornou-se um modo de vida à medida que as hostilidades com a Espanha de Filipe II subiam de tom, até chegar ao ponto em que era impossível distinguir comércio de saque e pirataria. Tudo isto criou, naturalmente, uma sociedade mais fluida, que apesar de não ser ainda bem uma meritocracia, permitia que alguma da nata viesse ao de cima. E não havia falta de talentos escondidos.
(...) No entanto, o desejo das riquezas do ultramar trazidas para Inglaterra pelo "comércio" - através de canais legítimos ou de pirataria - não nasceu com os homens de Isabel. As cortes dos Tudor, a partir de Henrique VIII, chafurdavam literalmente no luxo. O luxo - quer se tratasse de roupas sumptuosas, jóias, comidas ou divertimentos - fazia parte integrante do poder de Henrique e, com Isabel, tornou-se um símbolo-chave do seu domínio. Naturalmente, a corte continuava a ditar a moda ao resto do país, e todos os que procuravam um estatuto real tentavam imitar a sua maneira de vestir, os seus gostos dispendiosos e a sua apetência pelas "preciosidades", os artigos de luxo vindos da Índia e do Oriente. E o dinheiro era o prémio mais altamente valorizado pela própria rainha. Permitia-lhe pagar as contas e financiar - parcimoniosamente - a sua aura de riqueza, poder e amor cortês, ao mesmo tempo que, acima de tudo, investia na segurança do reino. O dinheiro, seguido pelos artigos de luxo, tornara-se o maná do corpo político, atraindo a participação real na procura de ouro. Se um aventureiro com sorte propunha um plano para conseguir dinheiro que mitigasse a penúria da coroa, o patrocínio real nunca se fazia esperar. No entanto, antes de se empenhar a si mesma e aos seus navios em arriscadas e dispendiosas aventuras no ultramar, a rainha exigia quase sempre aos seus homens que arriscassem as respectivas fortunas, juntamente com a dela, ao serviço do reino. Até os ministros mais cautelosos, como Sir William Cecil, Sir Nicholas Bacon e Sir William Herbert, conde de Pembroke, se tornaram participantes entusiastas na procura de riquezas, apostando as suas fortunas pessoais na aventura. E assim se estabeleceu o precedente: quem ambicionasse o favor real teria de arriscar a sua riqueza pela rainha e pelo país. Os salários eram notoriamente miseráveis, muitas vezes pagos com atraso, ou nunca, de modo que ministros e funcionários públicos tinham de inventar maneiras de servir o reino e viver bem, ao mesmo tempo que gastavam as suas fortunas pessoais a favor da rainha. Pelos padrões modernos, era de esperar algum conflito de interesses na execução dos deveres, como acrescentar uma percentagem a uma proposta para cobrir os custos, mas a lealdade era sempre exigida. A resposta de Cecil e da rainha ao dilema de como manter estes fogosos aventureiros sob controlo foi promulgar a venda de patentes que concediam a exclusividade do comércio de vinhos doces, ou da mineração de alume, estanho, cobre ou sal, ou até a venda de terras da coroa. A mais lucrativa destas patentes, ou concessões, foi provavelmente a que, em 1560, outorgou ao Lorde Almirante Clinton (e aos seus sucessores) o direito de, nos julgamentos de casos de pirataria ou de queixas contra detentores de cartas de corso legítimas ou cartas de represália, cobrar um terço dos bens confiscados ao pirata ou ao aventureiro legítimo.
O segredo do êxito
No entanto, o verdadeiro segredo do êxito de Isabel a lidar com esta predadora mistura de cortesãos, mercadores e parentes chegados, todos eles à procura de poder, saque e riquezas, residia na habilidade com que fundia e dava homogeneidade aos colossais e divergentes egos dos seus fidalgos e mercadores aventureiros, ao mesmo tempo que impunha a sua vontade pessoal para protecção e segurança de Inglaterra. A segurança dela própria e a do país tinham indiscutivelmente precedência sobre a ganância, a determinação em descobrir "novos mundos", rotas comerciais mais rápidas para a Índia e as visões imperialistas de colonização de todos eles. E esta "fusão" é um tema recorrente transversal a todos os aspectos do seu reinado. Como rainha, geriu o equilíbrio interno do poder na corte, uma acção que reproduzia ao nível internacional através do recurso constante à jogada do casamento, do fazer e desfazer de alianças, das suas mentiras e da aceitação - inicialmente tácita, depois declarada - da pirataria e da pilhagem como instrumentos centrais da política do Estado.
A coroa da rainha - a sua própria pessoa - e a essência da sua acção governativa dependiam do conceito de fusão, ou compromisso. Como governante protestante de um país com uma população mista de protestantes e católicos, ameaçada por gigantes católicos como a Espanha e a França, Isabel tinha perfeita consciência da necessidade de aparecer como "rainha de todos os Ingleses". O acordo religioso que culminou no Acto de Supremacia e Uniformidade, de Abril de 1559, que fazia dela o chefe supremo da Igreja de Inglaterra, não era solução católica nem protestante. Não agradava a ninguém, mas ofendia poucos. Tinha sido habilmente concebido de modo a proporcionar um terreno comum que mantivesse a nação em paz.
Taxa para os católicos
Os católicos do reino tinham a possibilidade de não participar nos serviços da Igreja Anglicana pagando uma pequena "taxa de recusa" e praticar a religião escolhida sem receio de serem queimados na fogueira, desde que não se envolvessem em actos de traição contra a rainha ou o seu governo. Até o número de funambulismo que era constantemente obrigada a executar - fingir interesse no casamento para fazer e desfazer acordos de paz internacionais - mais não era do que uma parte da sua incessante procura de um equilíbrio de poder. Acima de todas as outras considerações, o fio dourado que atravessava toda a política interna e externa de Isabel era a segurança do reino. Os factos falam por si mesmos. (...) O trauma culminou nos anos finais de suspeita e encarceramento por ordem da irmã, Maria, como a própria Isabel tão eloquentemente ilustrou ao escrever com um diamante no vidro de uma janela de Woodstock: "Muito tem sido suspeitado, nada pôde ser provado, diz Isabel, a prisioneira." Não admira que a segurança pessoal e a do reino se tenham tornado os seus "mantras" e que tenha usado, para atingir este objectivo, todas as armas à sua disposição.
A Rainha Pirata
Autor: Susan Ronald
Editor: Quidnovi
464 págs., ?24,95