Culpa do senhor Morais

a Há sempre culpados em tudo e nesta história o culpado é o senhor Morais. Nasceu a 1 de Agosto de 1755, no Rio de Janeiro, faltavam três exactos meses para o terramoto de Lisboa. Filho único de casal abastado (como o recorda o filólogo José Pedro Machado, em texto que sobre ele escreveu em 1989), Antonio de Moraes Silva havia de fazer-se bacharel em Coimbra, em 1779, ano em que alguém entendeu denunciá-lo à Inquisição. Leituras esquisitas, já se sabe. Montesquieu, Rousseau, Voltaire. Felizmente, tal como o denunciam também o avisam. Em Julho, ao saber que ia ser preso, foge para Lisboa e daí embarca para Londres, onde se torna secretário do embaixador de Portugal, um homem que lhe deu acesso à sua "mui escolhida e copiosa livraria". Aqui se afundou em páginas e letras, emergindo delas como dicionarista. Isto enquanto traduzia do inglês uma História de Portugal (escrita por ingleses, bem entendido) que haveria de ser editada em 1778. Depois de Londres, Roma e, depois desta, Paris, onde também foi secretário de outro embaixador português. Quando soube que a Inquisição já não o perseguia (chegara-lhe às mãos um indulto), voltou de imediato a Portugal. E trazia consigo livros que queria editar, entre eles o futuro Diccionario da Língua Portugueza, que a Borel e Borel lhe comprou por 2000 cruzados. A venda da obra foi um sucesso e os editores deram-lhe, sem que ele os pedisse, 600 mil réis de gratificação (muito dinheiro à época, mas 600 escudos no futuro e hoje a módica quantia de 3 euros). E foi assim que, em 1789, escrito por um carioca, nasceu o primeiro dicionário do português moderno. "Na verdade", escreveu José Pedro Machado no bicentenário, "os dicionários explicativos dos sentidos das palavras da Língua Portuguesa assentam, directa ou indirectamente, no de Morais." Como o que ele próprio compilou para a Sociedade de Língua Portuguesa.
Morais, entretanto, assentara praça na vida. Em Lisboa, casou com Dona Narcisa, filha de um tenente-coronel. Este não tardaria a ir em missão para Pernambuco, levando com ele toda a família, Morais incluído. Aí, Morais fez-se advogado de fama e chegou a juiz de fora, mas na Bahia. Isto enquanto se aplicava na segunda edição da sua obra mestra. Doenças levaram-no, porém, a trocar a advocacia pela agricultura e a estudar medicina e farmacologia, ajudando a curar noutros o que nele se agravava, com perda de faculdades físicas (cegou de um olho, sem qualquer ensejo de metáforas camonianas). Foi, ainda, coronel de ordenanças, comandante militar da freguesia de Muribeca e capitão-mor da vila de Santo António do Recife. Morreu a 11 de Abril de 1824. Ironicamente, a terceira edição do seu valioso dicionário, em 1823, um ano após o grito do Ipiranga, ainda era dedicada a "D. João VI, Rei de Portugal, Brazil e Algarve".
Por isso já sabem: a língua que escrevemos é culpa do senhor Morais. Os vendilhões do templo chegaram depois.

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