1913-2008 Aimé Césaire O homem que inventou a negritude
O poeta e político caribenho de língua francesa Aimé Césaire, que lançou, com Senghor,
o movimento da negritude, morreu quinta-feira, aos 94 anos, na Martinica. André Breton disse do seu livro de estreia que era "o mais alto monumento lírico do nosso tempo"
a O poeta, dramaturgo e ensaísta Aimé Césaire, admirado por André Breton, que o conheceu durante a II Guerra Mundial, foi também, com Léopold Sédar Senghor e Léon Damas, um dos fundadores e dinamizadores do movimento da negritude, cujo esforço de revalorização da herança cultural africana viria a contribuir decisivamente para o posterior processo de descolonização. Nascido em 1913, na Martinica - onde morreu na quinta-feira, aos 94 anos -, Césaire foi mesmo o primeiro a utilizar o termo "negritude", no longo poema Cahier d"Un Retour au Pays Natal [Diário de um Regresso ao País Natal], inicialmente publicado na revista parisiense Volontés, em 1939, e depois editado autonomamente com prefácio de Breton, que o considerou "o mais alto monumento lírico do nosso tempo".Césaire nasceu numa família pobre, mas o seu pai era um homem instruído, que investiu na educação dos filhos, e em especial na de Aimé, que cedo se revelou um aluno talentoso. Foi para lhe assegurar uma formação mais qualificada que a família se mudou de Basse-Pointe, onde Césaire nasceu, para a capital da Martinica, Fort-de-France, a cuja câmara municipal o poeta viria depois a presidir durante mais de meio século. Césaire estudou no liceu Schoelcher, onde teve como colega de turma Léon Damas, oriundo da Guiana Francesa, que também se tornaria uma das figuras de proa do futuro movimento da Negritude.
Aos 18 anos, os resultados escolares de Césaire dão-lhe acesso a uma bolsa para estudar em Paris, no liceu Louis Le Grand. É aqui que se dá o seu encontro decisivo com o senegalense Léopold Sédar Senghor, sete anos mais velho do que ele, com quem lançará as bases de um movimento que, tendo nascido das lutas reivindicativas de um grupo de estudantes de origem africana em Paris, acabou por assumir uma importância crucial, quer na "reinvenção" de uma identidade africana liberta dos estereótipos impostos pelos colonizadores europeus, quer no poderoso impulso que veio a dar aos processos de descolonização.
Césaire nunca alcançou a reputação internacional de Senghor, que, além de ter sido um académico prestigiado e um escritor premiado em todo o mundo - foi o primeiro africano a entrar na Academia Francesa -, assumiu durante vinte anos a presidência do Senegal. Foi, no entanto, um escritor relevante e original, e um político corajoso, que atacou com a mesma veemência os colonizadores europeus - o seu Discurso Sobre o Colonialismo, de 1953, é ainda hoje uma referência da literatura anti-colonialista - e os seus antigos correligionários do Partido Comunista Francês, que em 1945 tinham apoiado a sua candidatura à presidência da Câmara de Fort-de-France, e em cujas listas o poeta seria eleito, no ano seguinte, deputado pela Martinica ao parlamento francês.
Breton e Picasso
Antes do seu regresso à Martinica, em 1939, Césaire frequentou a Sorbonne, onde estudou Latim, Grego e Literatura Francesa, e passou algum tempo na Jugoslávia com um amigo que também se formara em Paris, o linguista, foneticista e pedagogo de origem croata Petar Guberina, criador de técnicas de ensino inovadoras, ainda hoje utilizadas, quer na aprendizagem de línguas, quer na educação e reabilitação de surdos e crianças com patologias da fala.
Em 1937, Césaire casa-se com Suzanne Roussi, uma estudante igualmente oriunda da Martinica, e ambos regressam, em 1939, ao país natal, onde se empregam como professores e criam quatro filhos e duas filhas. O poeta ensina no mesmo Liceu Schoelcher que frequentara em adolescente, e aí terá como alunos o romancista, poeta e ensaísta Édouard Glissant, que chegou a ser proposto para receber o Nobel da Literatura, e o psiquiatra e escritor Frantz Fanon.
Em 1941, juntamente com o escritor e filósofo René Ménil, Césaire e a sua mulher fundam a revista cultural Tropiques, onde Suzanne - que se divorciou em 1963 e morreu pouco depois - publica uma importante série de ensaios, um deles consagrado ao surrealismo e às suas relações com a nova poesia das Caraíbas.
André Breton, que não conhecera Aimé Césaire no período em que este vivera em Paris, vem a conhecê-lo na Martinica, durante a II Guerra Mundial, e, entusiasmado com a sua poesia, estimula-o a usar o surrealismo como arma política. O que, de algum modo, o poeta fará num conjunto de livros publicados na segunda metade dos anos 40, designadamente Les Armes Miraculeuses (1946), que recolhe, a par de alguns inéditos, muitos poemas que já tinham aparecido na revista Tropiques, mas que só então chegam ao público francês, através da prestigiada editora Gallimard. Segue-se, em 1948, Soleil Cou Coupé e, no ano seguinte, Corps Perdu, cuja edição contou com a colaboração de um talentoso ilustrador, um espanhol chamado Pablo Picasso.
Meio século no parlamento
É também no pós-guerra que Césaire inicia a sua carreira política, que irá durar meio século. Em 1945 passa algum tempo no Haiti, como "embaixador cultural" nomeado pelo governo provisório da França do pós-guerra, funções que acumula com a docência de literatura francesa. A história da ilha sempre o impressionara. Fora ali que a negritude se pusera de pé pela primeira vez, escreveu Césaire, referindo-se à revolta de escravos que, no final do século XVIII, aboliu a servidão no Haiti, que acabaria por declarar a sua independência em 1803, após ter derrotado as tropas enviadas por Napoleão.
Na obra de Césaire, o Haiti ocupa provavelmente um papel mais relevante do que a própria Martinica. Escreveu um ensaio sobre Toussaint Louverture, líder da revolução haitiana, e, na sua peça de teatro La Tragédie du Roi Christophe (1963), serve-se da figura de Henri Christophe, que, no início do século XIX, governou um efémero reino no norte da ilha, para discutir os problemas da descolonização.
Em 1945, Césaire torna-se presidente da Câmara de Fort-de-France - cargo em que permancerá durante três mandatos consecutivos - e, no ano seguinte, é eleito para a Assembleia Nacional nas listas do Partido Comunista Francês. Manter-se-á como deputado, ininterruptamente, até 1993, quando abandona a vida política.
Logo em 1946, Césaire co-redige a proposta de lei que transformará Guadalupe e a Martinica em departamentos ultramarinos da França, estatuto que ainda mantêm, e ao qual devem o facto de serem hoje parte integrante da União Europeia, tal como a Guiana francesa e a ilha da Reunião. Césaire, no entanto, nunca foi um europeísta. Em 1951 votou contra o Tratado de Paris que instituiu a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, como depois votaria contra os tratados fundadores da Comunidade Económica Europeia e do Euratom.
O papel que desempenhou na aprovação da lei da assimilação, como ficou conhecida, veio a ser duramente criticado pelos que defendiam a independência da Martinica. Mas Césaire achava que, na época, era esta a solução que trazia mais vantagens aos seus conterrâneos, e o poeta surrealista foi sempre, em política, alguém mais interessado em resolver problemas do que em fomentar utopias. As críticas que mais tarde dirigiria às políticas comunistas relativas à descolonização denunciavam, justamente, o que considerava serem estratégias abstractas, que ignoravam as dificuldades e os interesses reais dos povos colonizados.
Surrealista por natureza
Nas eleições legislativas de 1956, o escritor encabeça ainda a lista do PCF na Martinica. Mas a ruptura está para breve. É nesse ano que o secretário-geral soviético Nikita Krouchev apresenta, no XX congresso do PCUS, o seu célebre relatório, e a reacção cautelosa dos comunistas franceses à denúncia dos crimes do estalinismo decepciona Césaire, que, logo após a revolta húngara de Outubro, decide mesmo abandonar o partido, escrevendo uma extensa e duríssima carta ao então secretário-geral do PCF, Maurice Thorez. Dois anos mais tarde, Césaire cria o Partido Progressista da Martinica, que ainda hoje mantém um deputado no parlamento e que defende o reforço da autonomia da ilha, mas não a sua secessão da França.
Ao longo dos anos 60, Césaire consegue conciliar a sua activa carreira política com a criação literária, revendo a sua obra poética anterior e publicando várias peças de teatro, como a já referida La Tragédie du Roi Christophe, e ainda Une Saison au Congo, em torno do assassinato de Patrice Lumumba, e Une Tempête. Esta última, originalmente publicada na revista Présence Africaine, 1968, é uma singular revisitação d"A Tempestade, de Shakespeare. Césaire recupera as personagens do dramaturgo inglês, mas foca o enredo nos conflitos raciais que opõem Prospero, o escravo negro Caliban e o mulato Ariel.
O seu silêncio criativo ao longo da década de 70 parecia anunciar que se reformara da escrita, mas, em 1982, regressa com um novo livro de poemas - Moi, Laminaire -, no qual o ímpeto vulcânico dos seus poemas de juventude dá lugar a um lirismo amargurado.
A sua obra poética tem sido vista como uma tentativa de cruzar o surrealismo com as suas raízes culturais africanas. Aimé Césaire, no entanto, numa entrevista dada aos 90 anos, sugere que o seu surrealismo e o seu "africanismo" são uma e a mesma coisa. "As pessoas dizem: "é surrealismo". Mas, então, muitos camponeses africanos são surrealistas sem o saber, já que o modo de pensar africano não é analítico - é sintético, analógico e metafórico. O surrealismo é isto."