O Museu de Serralves tem um drive-in e uma fonte de peixes
A Fonte de Cem Peixes de Bruce Nauman tem, afinal, apenas 97. Mas é "uma assombrosa fonte luminosa", em contraste com as instalações e a "não-pintura" dos três artistas europeus que encenam imagens de Violência Institucional e Poética. São as novas exposições de Serralves
a "Isto mais parece uma garagem!" A exclamação do jovem estudante, que, com a sua turma, entrava ontem de manhã no hall de Serralves, era justificada pelo cenário ruidoso da montagem de uma das obras das novas exposições que hoje à noite são inauguradas neste museu do Porto (a abertura ao público é só amanhã).De facto, os visitantes eram surpreendidos por algo entre uma sucata e uma garagem cheia de carros velhos: um Rover, um Peugeot, um Ford, um Volvo, um Renault. Uns já sem tejadilho, outros sem portas ou janelas, outros apenas visivelmente muito gastos. Pelo meio deles, vários homens abriam e fechavam portas e malas, como se fossem vulgares mecânicos (sem fato-macaco). Mas, de entre todos, um se destacava, não porque usasse uma t-shirt sem mangas, mas porque surgia simultaneamente no ecrã de vídeo que estava a ser montado no lugar.
Era o artista holandês Erik van Lieshout (n. 1968), um dos três autores da exposição Violência Institucional e Poética, que agrupa igualmente trabalhos da francesa Anne-Lise Coste (n. 1973) e da alemã Tatjana Doll (n. 1970). Entre os "mecânicos" encontrava-se também Ulrich Loock, o director adjunto do Museu de Arte Contemporânea de Serralves (MACS) e comissário das novas exposições, que incluem ainda uma sugestiva instalação do consagrado artista norte-americano Bruce Nauman (n. 1941), Fonte de Cem Peixes.
Questionar a linguagem
Na visita que ontem guiou às novas exposições no MACS, Ulrich Loock começou por explicar onde foi buscar o título da primeira. Violência Institucional e Poética é uma frase retirada de uma carta aberta do artista e poeta belga Marcel Broodthaers (1924-1976), que, nos anos 60, decidiu abrir no seu estúdio em Bruxelas uma espécie de museu privado de arte moderna, num gesto com que se propunha problematizar o papel dos museus na sociedade.
Loock viu aí um bom mote para a reunião de Erik van Lieshout, Anne-Lise Coste e Tatjana Doll, porque todos eles vêm investindo num trabalho "que põe em questão os mecanismos da linguagem e da comunicação na nossa sociedade", explicou aos jornalistas, citando, a propósito, o filósofo francês Roland Barthes, quando ele escreveu que "a língua é fascista", porque nos impõe as regras da comunicação. "Os três artistas captam a energia da língua", mas utilizam os seus signos para criar significações novas, acrescentou o comissário.
É isso que faz Erik van Lieshout, abordando, nas suas instalações em cenários improvisados, "a perda de controlo do cidadão perante a sociedade". No tal drive-in (Rock, 2007), como nas três outras instalações agora patentes em Serralves (Lariam, 2001, colocada do lado de fora do museu, Up e Fantasy Me, de 2005), o artista holandês retrata esse conflito explosivo homem-sociedade, seja no contacto com os novos-ricos do seu país, seja na dificuldade de comunicação entre diferentes línguas e culturas, nas questões sexuais e raciais, ou mesmo na memória do nazismo.
Perto da natureza
Os pictogramas gigantes e coloridos de Tatjana Doll (como a sua representação de um comboio japonês de alta velocidade numa tela de 30 metros) "são uma espécie de não-pintura", diz Loock, mas também uma forma de subversão da linguagem. O mesmo acontece com as caligrafias quase primárias de Anne-Lise Coste, que se apropria das letras, das palavras e das frases - "talk a lot about sex", "my love", "I"m down on my knees" ou "merde" - para lhes dar novos sentidos, "de agressão ou resistência, de desejo ou desespero", escreve o comissário no texto do catálogo.
Mas é na sala que acolhe a fonte de Bruce Nauman que o visitante encontra uma espécie de retiro para compensar o ruído que marca o percurso de Violência Institucional e Poética. Os seus 100 peixes (que, afinal, são apenas 97, revelou Ulrich Loock), um trabalho de 2005 pertencente a uma colecção privada de Nova Iorque, transportam-nos para um mundo visual (e principalmente sonoro) mais próximo da natureza e de um dos seus elementos primordiais, a água. É uma obra com reminiscências biográficas - ele diz que as espécies representadas são as que ele pescava com o pai, quando era criança. Mas é também uma rima com fases anteriores da sua obra, tanto com o seu Auto-retrato como Fonte (1966/70), como com o vídeo (que integra a colecção do MACS e acompanha a instalação) em que Nauman escreve "o verdadeiro artista é uma assombrosa fonte luminosa" (1998).