Arte

Querem que peça desculpa. Mas nem dois milhões de assinaturas a pedir o boicote à sua participação numa bienal nas Honduras o fazem responder se o cão que teve preso numa galeria de arte morreu ou não. Habacuc fala ao P2 de uma hipocrisia generalizada e diz que os limites éticos da arte só podem ser estabelecidos por cada artista. Não está sozinho. Por Vanessa Rato

a Claro que ele "contava com que alguma coisa acontecesse" e "esperava reacções de todos os tipos". Só não antecipou um efeito à escala mundial. Guillermo Vargas Jiménez, também conhecido como Habacuc, o profeta da justiça divina: a meio do Verão passado este jovem costa-riquenho de 32 anos era zero, ou perto disso, fora do circuito da arte latino-americana e nada faria adivinhar que de um momento para o outro se tornasse no sujeito do ódio de milhões de pessoas.
Cínico, monstro, psicopata, assassino, doente, louco - em blogues de todo o mundo e até em artigos de alguns jornais internacionais a visceralidade da reacção é absoluta. Na Internet, só o motor de pesquisa Google revela mais de um milhão e meio de entradas com o seu nome e, ontem, a petição Boicote à presença de Guillermo Habacuc Vargas na Bienal Centroamericana Honduras 2008 já tinha dois milhões de assinaturas. O motivo do ódio? Aquilo a que Guillermo chamou Exposicion No.1 e que se inaugurou a 16 de Agosto de 2007 na Galeria Códice, em Manágua, Nicarágua.
As imagens estão por todo o lado, incluindo o blogue de Guillermo (http://artehabacuc.blogspot.com): um cão famélico, cheio de pústulas e feridas de sarna amarrado ao canto do que supõe ser a sala de exposições da Códice, umas vezes em pé a olhar em volta, em aparente desamparo, outras deitado, de focinho recolhido entre as patas, como que resignado. Isto nuns registos. Noutros, além do cão, vê-se uma série de pessoas, o que se supõe serem os convidados da inauguração, umas vezes completamente distraídos, a conversar, outras a lançar olhares de soslaio à cena, pensativos ou consternados, mas sem demonstrar intenção de intervir.
Segundo a história que correu à época e que voltou a circular nos últimos dias por e-mail, Guillermo terá pago a cinco crianças para apanharem um cão vadio num dos bairros pobres da capital nicaraguense, depois tê-lo-á mantido preso na galeria, sem água nem comida, até à sua morte por inanição, como elemento de uma estrutura com características de instalação: o hino sandinista a correr do fim para o princípio numa aparelhagem, o que o próprio diz serem 175 pedras de crack e uma onça de marijuana a arder num incensário e a frase "és o que lês" escrita com ração para cão na parede em frente àquela a que o animal está preso - fora do seu alcance, portanto.
Superou as expectativas
O escândalo começou quase de imediato e adensou-se quando, na sequência desta Exposicion No.1, Guillermo foi convidado para representar a Costa Rica numa bienal de arte contemporânea que cada ano decorre num país da América Central e que este ano se inaugura a 16 de Novembro em Tegucigalpa, a capital das Honduras. De nada valeram as explicações da proprietária da Galeria Códice, Juanita Bermúdez, que acabou por emitir um comunicado a dizer que Natividad, o cão, só tinha estado preso durante as três horas da inauguração, que tinha passado o resto do tempo no pátio da galeria, alimentado, e que ela mesma tinha intenção de ficar com ele, mas que o animal acabou por fugir. Em Outubro, um cidadão espanhol, que assina como Jaime Sancho, lançava o seu "boicote" devido aos "maus tratos" ao cão através da PetitionOnline.
"Solicitamos o boicote, independentemente de ser ou não verdade que o cão tenha morrido", explica-nos Jaime numa breve troca de e-mails. "Não vamos perdoá-lo a não ser que ele [Habacuc] peça desculpa pessoalmente, e não nos chega que outros e não ele digam que não vai voltar a acontecer."
Acontece que Habacuc não tem qualquer intenção de pedir desculpa. Depois de alguns e-mails, quando nos atende o telefone em San José, a capital costa-riquenha, onde vive e trabalha, Habacuc fala pausadamente, com muitos silêncios, e hesita nas respostas. Explica que, normalmente, prefere escrever sobre o seu trabalho do que falar, mas é inabalável (e coerente) nas suas convicções: "Eu sou artista, aquilo que faço é arte, as reacções que tem havido são do campo moral e não ético. Trata-se de avaliações que descontextualizam o sentido da minha obra e não tomam em consideração tudo o que a compõe."
Tal como se pode ler em alguns sites na Internet, Habacuc explica que a sua Exposicion No.1 se assume como comentário ao que aconteceu a Natividad Canda Mairena, um imigrante nicaraguense na Costa Rica que entrou durante a noite num complexo industrial de Cartago e acabou por ser morto por dois rottweiler da segurança, num ataque à vista de membros da segurança do complexo e, depois, também da polícia que entretanto acorreu ao local. Ambas forças de segurança explicariam posteriormente nada ter podido fazer e não terem usado as suas armas de fogo com medo de acertar em Natividad, em vez de nos cães.
"Há um vídeo de duas horas, das câmaras de segurança, em que ele é esquartejado enquanto toda a gente assiste. O que eu tentei foi criar uma situação semelhante, uma relação semelhante entre o que se passava na minha obra e o público da galeria", explica Habacuc.
Ele já chamou a atenção para o facto várias vezes: ninguém tentou soltar o cão, nem chamou a polícia ou qualquer organização de defesa dos direitos dos animais. Chama também a atenção para o facto de o caso Natividad Canda Mairena não ter merecido qualquer acção cívica e quase não ter tido tratamento mediático - nenhum, comparado com a dimensão da reacção à sua Exposicion No.1.
Claro que Habacuc contava com um efeito mediático do tipo bola de neve - de resto, na ficha técnica do projecto tem discriminados desde o início cinco elementos: o hino sandinista, o incensário, o cão e o texto de parede, sim, mas também "a utilização de meios de comunicação de massas" como "a imprensa escrita e a Internet". Mesmo assim, diz ele, o caso "superou as expectativas".
"O cão morreu na exposição", diz-nos a dada altura. Perguntamos-lhe se está a aludir à narrativa sugerida pela sua obra (ficção), ou a afirmar que o cão efectivamente morreu (plano da realidade). Ele diz apenas: "Na realidade reservo-me o direito de não responder."
Outros exemplos
Era de esperar. Exposicion No.1 vive, em parte, das possibilidades projectivas deixadas ao público - fechar a narrativa seria, em parte, destruir o efeito procurado. E, depois, Habacuc acrescenta: "Eu desconfio das mensagens claras."
Habacuc fala de uma hipocrisia generalizada - "Morrem animais por tudo e por nada" - e, no dia seguinte à conversa telefónica, faz-nos chegar por e mail mais um depoimento: "Mais do que uma ideia específica interessa-me trabalhar a partir de um conjunto de preocupações. Desde 1999, quando comecei a produzir nas artes plásticas, que os meus trabalhos se vinculam a questões institucionais. Em particular interessou-me rever a figura do artista, do galerista, o curador, o coleccionismo, etc. Mas, além da crítica à instituição da arte, a minha obra trata outras relações no campo político e social. Interessa-me pôr em evidência as relações de poder que têm lugar nesses âmbitos. Por outro lado, não me interessa um suporte específico. Trabalho a partir do que resulte mais conveniente para a obra. Assim, nestes anos, fiz pintura, fotografia, vídeos, instalações e graffiti. Procuro gerar uma tensão entre conceitos distintos, assim como voltar a pensar lugares-comuns."
É o tipo de discurso de milhares de artistas a trabalhar hoje. E já na conversa telefónica Habacuc aludira a uma história da arte que mais do que contextualiza uma acção como a sua.
De facto, os exemplos de obras que efectivamente sacrificaram animais multiplicam-se. De resto, multiplicam-se os exemplos de obras que a dada altura e pelos mais diversos motivos foram vistas como eticamente reprováveis e que hoje são tidas como fundamentais.
Para ficar apenas no domínio da arte contemporânea, e para começar na América Latina, houve o Tiradentes: totem-monumento ao preso político, uma intervenção de 1970 em que Cildo Meireles, em plena ditadura brasileira, atou uma dezena de galinhas a um totem na praça do Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro e as matou - Cildo Meireles usou uma referência ao martírio do independentista Tiradentes, preso e esquartejado no final do século XVII, para um comentário à situação política do país. Mas há também o alemão Peter Weibel, com as suas várias TV Aquarium (TV Death), entre 1970 e 1972: televisões transformadas em aquários que vão sendo esvaziados até uma série de peixinhos serem deixados em seco, a lutar por oxigénio, num comentário à hipocrisia das regras de exibição de violência na televisão. E depois há casos como o do alemão Gregor Schneider, conhecido pelo ambiente sinistro das suas instalações - a sua Dead House Ur (1985-1997), um complexo com 22 quartos, ganhou o Leão de Ouro na Bienal de Veneza em 2001 -, que está a tentar construir uma sala com condições de assistência médica para ter um doente terminal a morrer em público (está à procura de candidatos). E há o eterno exemplo do espanhol Santigo Sierra: já pagou a imigrantes ilegais para passarem dias inteiros a arrastar uma pedra enorme de um lado para o outro e, noutra ocasião, para ficarem numa galeria a segurar um muro de tijolo; já pagou a prostitutas tóxico-dependentes para que o deixassem tatuar-lhes uma linha nas costas (mostrou as fotografias) e, há dois anos, causou um dos seus mais recentes escândalos, quando fez uma instalação numa sinagoga de Pulheim, na Alemanha, uma câmara de morte, como as dos campos de concentração, com uns supostos 245 metros cúbicos de gás. E, depois, que têm as associações de defesa dos direitos do animais a dizer da histórica performance de Joseph Beuys How to Explain Pictures to a Dead Hare (1965), em que o artista se apresentou numa galeria com a cara coberta de ouro e uma lebre morta nos braços? Ou ainda de outra das suas performances, porventura a mais conhecida, I Like America and America Likes Me (1974), em que terá passado uma semana fechado numa galeria de Nova Iorque com um coiote?
Alba, a coelha fluorescente
Os exemplos são intermináveis. Algumas vezes com graus ou tipos de violência cuja dimensão e implicações chegam a escapar a especialistas. Por exemplo, quando está em causa a criação de vidas inteiramente novas, como no caso da bioarte, como no caso de Alba, a coelha fluorescente que, há oito anos, o brasileiro Eduardo Kac conseguiu que um laboratório francês produzisse.
A polémica causada pelo caso foi tal que, no último momento, Kac acabou por não poder ficar com Alba - o director do laboratório não autorizou a saída do animal das instalações. Até hoje não se sabe o que aconteceu ao coelho. Segundo Kac, no caso de ainda estar vivo, o GFP Bunny deve estar a chegar ao fim do ciclo de vida.
"Para mim o limite é o da dor", diz-nos Kac via telefone a partir dos Estados Unidos, onde vive e trabalha há mais de 20 anos. Ele está com Habacuc e sublinha também a questão da hipocrisia social: "Empenha-se um enorme esforço, energia e tempo à causa de um cão que poderá ou não ter morrido, quando temos centenas de espécies que desaparecem ao longo de um só ano e esquece-se até o sofrimento de humanos, próximos mesmo daqueles que gastam este tempo."
Para Kac é claro: "As linguagens violentas [surgem na arte] como forma de responder a uma crueldade muito maior que a população de todo um país sofre." Um artista, diz ele, "cria uma linguagem própria, aquilo a que se pode chamar "um idiolecto"", uma linguagem de um só sujeito que, ao longo do tempo, talvez outros venham a aprender a falar. "Parece uma coisa sem sentido inicial, como quando se aprende uma língua estrangeira, mas passa-se de um momento de invenção a, talvez 50 anos depois, uma familiaridade em que a estranheza começa a desaparecer."
Kac, que traz ao mundo vidas novas (animais, mas também plantas) como obra, diz que "a ética se ocupa de todos os aspectos das relações entre humanos" e que, "nesse sentido, a arte não será uma excepção, tanto no momento da produção da obra, como no da sua apresentação e nos aspectos de mercado", mas diz também que "a arte não precisa de uma justificação a não ser o desejo do artista, o contexto social que o motiva, mais o sentido dessa obra e o seu impacto social". Precisamente, acrescenta Kac, "a arte é o laboratório da liberdade, o espaço onde se experimenta com o que não tem limites nem precisa de justificação". Impor limites éticos universais às práticas artísticas seria, diz ele, "antiético".
Precisamente, reside aqui o maior dos problemas da possibilidade de uma ética para a arte, diz o ensaísta e especialista em filosofia da comunicação José Bragança de Miranda: "Os limites para a arte são políticos e não éticos, na medida em que o que acaba por se verificar é que a ética redunda normalmente numa proibição."
Definir limites éticos para a arte implicaria - como noutras áreas - a criação de uma norma universal e isso redunda (e tem redundado) em actos de censura, defende Bragança de Miranda: "Se se começa a entrar por esse caminho, toda a arte fica impossibilitada. Sabemos onde começa [essa via], mas não sabemos onde vai acabar. A ética corresponde a um problema, mas não é uma solução para o mundo da arte. Se fosse possível decidir limites, eles seriam apenas verdade a um nível individual e não generalizável."
Bragança de Miranda sublinha uma "relatividade dos valores éticos" e que perante a imposição de limites "grande parte da arte moderna deixaria de existir": "A arte demorou séculos a libertar-se da religião, da moral, da estética como forma de se desenvolver livremente. Eu sou dos que defendem que ela tinha que se libertar de qualquer interferência externa. É aí que ela se torna política."
Para o especialista, "não deverá haver limites que não sejam os que resultem do impacto da obra na imaginação pública". Contudo, ou por isso mesmo (e não há aqui qualquer contradição), ele é um dos signatários da petição contra Habacuc: "A única coisa em que devemos confiar é na forma como a opinião pública tece ou não linhas de clivagem. Uma obra suscita efeitos e tem que suportá-los. Aliás, os artistas antecipam, usam e abusam desses efeitos. Neste caso eu estou mais com o cão do que com o Habacuc. Tal como me sinto mais próximo do coelho do que do Eduardo Kac e como recusaria a ver a performance das galinhas do Cildo Meireles."
Sublime neutralidade
Mas um crítico e comissário de arte contemporânea como Nuno Crespo, professor de Filosofia da Arte no Instituto de Artes Visuais Design e Marketing (Iade), vai mais longe no que considera ser o privilégio (para os artistas) de "uma sublime neutralidade". "Só conheço um limite para a arte, o da boa arte", diz-nos. E explica: "Se houvesse limites, formais, materiais e éticos, um urinol nunca poderia ter sido contemplado, experimentado, vivido como uma obra de arte. Toda a acção humana tem limites e a acção artística não é excepção. Conhece um primeiro limite, que é o limite da sua própria linguagem. Depois, conhece o limite do outro enquanto instância de vivência da obra."
Os artistas sempre ultrapassaram limites, todo o tipo de limites: "Serviram Estados totalitários, ilustraram políticas, deram voz a causas... E a arte sempre envolveu muito sofrimento: do artista no acto criativo, no modelo que posa longas horas para o mestre pintor, no modelo que é envolvido em gesso para fazer um molde para uma escultura... É verdade que nestes casos se tratava de pessoas que consentiram, mas no casos da utilização dos animais essa não é sequer uma questão- mesmo que quiséssemos, os animais nunca poderiam consentir, falar, assentir."
O limite que a boa arte deve assumir, diz-nos Nuno Crespo, "é o da absoluta necessidade da obra e não outra": "Como diz a Susan Sontag, relativamente a essas questões os artistas devem atingir "uma sublime neutralidade". São de facto a excepção. Até houve momentos em que os criminosos eram considerados, do ponto de vista estético, as pessoas mais interessantes. Os doentes psiquiátricos como os rostos mais perturbantes para a fotografia. E desde os gregos que no campo artístico se assiste ao cometimento das maiores atrocidades sem nos causar a mais ligeira questão ético-moral. Pense-se nas tragédias gregas. Goethe dizia que este era o luxo supremo da arte, poder fazer-nos sentir prazer com a maior desdita que um outro pode experimentar."
Os antigos, recorda ainda, "andaram obcecados com o grupo escultórico do Laoconte porque o escultor tinha conseguido captar o momento exacto em que o homem e os seus filhos estão a morrer": "Sadismo? Doença? Desvio? Não, prazer estético."
Isto, ressalva, não quer dizer que vale tudo em arte, mas quer dizer que "vale tudo o que é necessário": "Não se trata de justificar o frívolo, a crueldade gratuita."
No caso de Habacuc e do cão envolvido na sua Exposición No. 1, "o acontecimento diz muito, mas não acerca da natureza da obra de arte". "Diz muito", defende Nuno Crespo, "acerca da tão contemporânea indiferença que o sofrimento dos outros nos motiva": "Ninguém foi salvar o cão, ninguém foi alimentar o cão, da mesma forma que não alimentamos os cães que vemos na rua, ou os sem-abrigo. Da mesma forma que deixamos envenenar o planeta por não cuidarmos dele. Os que hão-de vir depois de nós, aqueles que vão receber a herança que lhes vamos deixar, talvez já nem possam saber o que é tomar um banho num rio ou dar um mergulho no mar. É esta indiferença que este episódio do cão dá a ver."
Nuno Crespo é taxativo: "A única pergunta válida [aqui] é se era uma boa obra de arte." A isso não sabemos responder - não estivemos lá.

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