Jorge Coelho: Adeus meu caro amigo
O "bombeiro" do PS despediu-se ontem da política. Sai envolto em polémica e Pacheco Pereira estragou-lhe a festa de despedida, criticando-o olhos nos olhos. Será que algum
dia voltará à política? Ninguém sabe. Jorge Coelho é muito imprevisível
Foi a última Quadratura do Círculo (SIC/Notícias) com a participação de Jorge Coelho. Mas o programa de ontem foi mais que o fim ao comentário político do conhecido socialista. Foi o momento que marcou o adeus à vida política activa de um dos homens mais poderosos da política portuguesa dos últimos anos. Uma saída polémica, para não destoar do que foi a sua longa passagem pelos corredores do poder.O "bombeiro" do PS, como muitas vezes foi chamado no partido, o político para os momentos difíceis, o controleiro do aparelho rosa, o homem cujas palavras, muitas vezes gritadas, deixavam em êxtase os militantes socialistas, troca os corredores do poder pela vida empresarial. Vai assumir um cargo de direcção na empresa Mota Engil e é aqui que tudo se complica.
A Mota Engil é a maior empresa de construção portuguesa (facturou 1,4 mil milhões de euros em 2007) e Jorge Coelho, que há cerca de sete anos foi ministro das Obras Públicas, negociou com ela, em nome do Estado. Os factos têm sido interpretados por muitos comentadores e políticos de vários partidos como uma contratação cirúrgica, que visa facilitar os negócios da Mota com o Estado.
Ontem, o comentador e militante do PSD José Pacheco Pereira criticou no programa a transferência de Coelho da política para a empresa olhos nos olhos, como ninguém ainda tinha feito. De Coelho não se ouviu uma palavra. Viu-se apenas um rosto fechado, muito fechado. Mas Coelho teve um defensor: António Lobo Xavier, o outro interveniente no programa (militante do CDS-PP) e também administrador da Mota Engil. A defesa foi mais frágil que o ataque e a "festa" de despedida de Coelho acabou definitivamente estragada. Foram as críticas de Pacheco que a SIC/Notícias repetiu ontem vezes sem conta nos seus noticiários.
O socialista chegou cedo (ainda não eram 10 horas) e bem disposto aos estúdios da SIC, em Carnaxide para a gravação da Quadratura, transmitida às 23 horas de ontem. Trazia vestido um dos seus fatos preferidos, um conjunto verde-escuro de bombazina que usa com alguma frequência. O seu tradicional "meu caro amigo", expressão que usa vezes sem conta como cumprimento, começou a ecoar de imediato pelos corredores assim que entrou na SIC.
O penteado de Pacheco
Já no estúdio, enquanto eram ajeitados microfones e cadeiras, o jornalista Carlos Andrade, Pacheco Pereira, Lobo Xavier e Jorge Coelho trocaram, como sempre, piadas e histórias. Pacheco queixou-se que, na semana passada, a cabeleireira lhe tinha transformado por completo o penteado. Coelho aproveitou a deixa para uma "bicada": "Houve até quem fizesse uma interpretação política sobre o seu novo penteado."
Já a gravar, Carlos Andrade anunciou os temas a debate: a nova lei do divórcio que o PS vai hoje apresentar em detalhe, o acordo ortográfico e o adeus de Coelho ao programa. Ao contrário do que é costume, os comentadores mostraram-se quase inteiramente de acordo sobre os dois primeiros temas.
À lei do divórcio pediram cuidado ao Governo para que não exagerasse na liberalização. Até Coelho deixou algumas críticas, alertando para o facto de os governos não se poderem esquecer que Portugal é um país maioritariamente católico.
Pacheco Pereira e Lobo Xavier disseram que o Governo estava a dar sinais que podia recuar na estrutura da lei, tal como já tinha recuado na intenção de proibir os piercings. "Isso [dos piercings] não tem pés nem cabeça. Podiam proibir a carne de porco", disparou Coelho, para logo a seguir anunciar que se a proibição da carne de porco avançasse logo ele se ofereceria para "liderar um movimento contra". "Adoro carne de porco, embora faça mal." Jorge Coelho estava bem disposto, mas a tempestade ainda estava para vir.
Consenso mereceu também o acordo ortográfico. Todos se manifestaram contra o acordo e a favor das diversas maneiras de falar e escrever em português.
Chega a tempestade
Estava tudo, portanto, a correr bem, num ambiente descontraído, apimentado por alguns momentos de humor. Até que foi anunciado o último tema: a saída de Jorge Coelho do programa SIC/Notícias e da política para se dedicar à administração da Mota Engil. Os rostos cerraram-se de imediato. Sentiu-se logo que o momento ia ser tenso. Carlos Andrade deu a palavra a Pacheco Pereira. Este não perdeu tempo e de imediato disse que tinha uma coisa simpática (lamentava a saída de Coelho do programa) e uma antipática para referir. Revelou que os comentadores tinham convencionado que não discutiam a questão antipática - "eu sei que Jorge Coelho não a quer discutir e eu compreendo as razões" -, mas, ainda assim, entendeu que o assunto da Mota Engil não devia passar em branco.
E para Pacheco Pereira há dois "problemas incontornáveis", mais "de futuro do que de passado" na ida de Coelho para a empresa. "Por que razão uma empresa com aquela dimensão escolhe o Jorge Coelho e não outra pessoa?", começou por perguntar. Para o militante social-democrata, que falava algo nervoso enrolando-se nas palavras, não está em causa o facto de o socialista ter sido ministro das Obras Públicas, mas logo a seguir lembrou que Coelho não tem uma carreira de gestão.
"Jorge Coelho foi ministro, é um quadro importante do PS, ainda recentemente foi o principal animador de um comício do PS e a empresa que ele vai ficar à frente tem uma parte importante dos negócios com o Estado (...), numa altura em que vamos assistir a um ciclo de grandes obras públicas. Não se pode deixar de suscitar a questão, que eu levantei aqui em relação a Pina Moura e a pessoas do meu partido: por que razão uma empresa nestas circunstâncias escolhe uma pessoa cujo perfil é a de um político e a de um político próximo do poder?"
O jogador de poker
Os monitores da régie da SIC mostravam um Jorge Coelho que ouvia cada uma das palavras de Pacheco como um jogador de poker que tudo faz para não denunciar o seu jogo. Olhava directamente para o seu crítico sem mexer um músculo do rosto.
Pacheco não parava: "Não estou a dizer que ele vai cometer uma legalidade. Estou a dizer que isto levanta um problema complicado, que o Jorge Coelho vai defrontar sempre que a empresa que vai liderar ganhar ou perder um concurso, sempre que houver uma negociação. Isto é um problema que vai inquinar a relação da empresa com o Estado e o próprio papel do Jorge Coelho (...). É um problema que tem a ver com a excessiva dependência que o nosso sector empresarial tem das decisões do Estado, das negociações com Estado."
A resposta do socialista continuava a ser o silêncio absoluto. Em defesa de Coelho veio Lobo Xavier. Depois de, tal como Pacheco Pereira, revelar que tinha muita pena que o socialista deixasse o programa da SIC/Notícias e de tecer vários elogios ao homem que se ia embora, o militante do CDS/PP e empresário foi à tal questão "antipática".
Para Lobo Xavier, Pacheco Parreira falou "não do problema de Jorge Coelho, mas do problema da Mota Engil." Aqui, Carlos Andrade entendeu fazer uma "declaração de interesses": Xavier também é administrador da Mota Engil. "Administrador independente da Mota Engil", corrigiu o gestor. "A si também não há nada que lhe escape", soltou Pacheco. "Eu tenho é pouco passado em lugares políticos. De facto, lá vou fazendo a minha vidinha o melhor que sei", respondeu-lhe o Lobo Xavier.
A picardia não matou logo ali a questão "antipática". Lobo Xavier acrescentou que "os accionistas da Mota Engil não estão doidos nem doentes e mediram muito bem a escolha do Jorge Coelho". Pacheco foi por cima: "Esse é que é o problema." Carlos Andrade pediu explicações: "Estão a contratar uma gazua, ou um homem extremamente competente."
O gestor explicou então que não havia "nenhuma forma mais transparente de lidar com um político", como a que foi feita pela Mota Engil. "O que não está à vista são as relações escondidas ou tituladas com recibos verdes de políticos por esse país fora com empresas. (...) Não é por causa da política que o Jorge Coelho vai dirigir uma das maiores empresas portuguesas. Se o Jorge Coelho estivesse disponível para facultar as suas relações e se a Mota Engil as quisesse usar, seria muito mais fácil, muito mais discreto e, porventura, mais eficiente usar esses serviços doutra forma. Compreendo que haja polémica, mas as coisas terão as suas medidas."
Mais tolerante
O programa aproxima-se do fim e ainda faltava Coelho falar. Estava de saída e cabia-lhe matar a Quadratura do Círculo de ontem. Deixou a polémica de lado e falou de emoções. Coelho agradeceu a quase toda a gente ligada ao programa e à SIC, sem esquecer "o amigo" Balsemão. E tinha algumas revelações a fazer. Primeira, os três anos de programa não só o realizaram muito como melhoraram a sua "formatação democrática." O que é que isto quer dizer? Coelho explicou logo a seguir: "Gosto hoje muito mais do contraditório, tenho muito mais prazer em discutir ideias diferentes, tenho muito mais tolerância e respeito por aqueles que pensam de forma diferente."
Coelho admitiu ainda que algumas vezes exagerou na defesa das suas ideias, o que o levou a ter de pedir desculpa aos seus colegas de debate. E teve também "momentos difíceis": "Algumas vezes estava a defender coisas que estavam mesmo no limite que a minha consciência [política] dizia que eu podia ir. Mais um milímetro e estaria a violentar-me."
As últimas palavras seriam para Lobo Xavier e Pacheco Pereira, "duas pessoas superiores", e também para Carlos Andrade, "o moderador dos moderadores". "Tudo amigos", afirmou. "O debate democrático e contraditório faz bem à saúde", disse Pacheco Pereira para rematar. Coelho concordou.
O programa chegava ao fim com Jorge Coelho visivelmente emocionado. Não quis prestar declarações ao P2. Admitiu apenas que estava, de facto, comovido. Ao fim e ao cabo, não era só o programa de televisão que acabava para ele. Era também uma vida política intensa e polémica com mais de 20 anos que ali acabava. Para já ou para sempre, ninguém sabe. "Os [políticos] independentes são muito imprevisíveis", disse uma vez Coelho. Ele é muito mais.
A Quadratura do Círculo passa agora a ser transmitida a quinta-feira já com António Costa, presidente da Câmara de Lisboa e número dois do PS, no lugar de Coelho.