"Não há livros póstumos do Cardoso Pires. Ele não os deixou, não somos nós que os vamos inventar"
Manuscritos, fotografias, recortes de jornais, cartas e desenhos compõem o espólio de José Cardoso Pires. E há caixas reveladoras. Uma parte deste espólio é oferecido hoje, pela família, à Biblioteca Nacional: as cinco versões de Lavagante, um inédito descoberto pela filha
a Um dia José Cardoso Pires pediu ao seu editor Nelson de Matos para ir ter com ele à casa da Costa da Caparica, onde costumava trabalhar. Iriam almoçar um peixe, o autor de O Delfim não estava a conseguir escrever e precisava de se distrair.O editor encontrou em cima da mesa de trabalho do escritor uma única linha escrita num papel branco. Espalhados pelo chão do escritório estavam bocados de papéis escritos, rasgados e amachucados. "Tinham sido as versões várias para ele chegar àquela linha. E isso acontecia todos os dias quando ele estava a escrever", conta Ana Cardoso Pires, a filha do escritor que tem estado a organizar o espólio do pai.
José Cardoso Pires gostava de ter passado a limpo tudo o que ia escrevendo. Quando apareceram os computadores viveu feliz. Chamava-lhes "máquinas de apagar". Aparecia-lhe no ecrã só o que ele queria, não via por baixo o que estava escrito antes. Era um autor que reescrevia muitas vezes a mesma página.
Por isso o seu espólio é composto por várias versões dos seus livros. Por todas as fases que passou até ao trabalho final. "É essa a graça deste espólio, que não é um espólio enorme. O que tem é muitas versões de todos os livros que publicou. Três, quatro, é variável, tem sempre mais do que uma versão. Mostra o trabalho que esteve por trás daquilo", conta Ana Cardoso Pires.
O espólio é composto por manuscritos, obras passadas à máquina, revistas, fotografias e correspondência (principalmente com os críticos literários da altura, como Óscar Lopes e Jacinto do Prado Coelho, e políticos), que permitem ver a génese do trabalho.
Há vários meses que a Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) e a família de José Cardoso Pires têm vindo a estudar a melhor forma de preservar e de disponibilizar o espólio do autor de Dinossauro Excelentíssimo. O passo inicial para a integração do espólio na Biblioteca Nacional é dado hoje, às 18h30, com a assinatura do termo da doação pela viúva do escritor, Maria Edite Pereira - em representação dos herdeiros - e pelo director da BNP, Jorge Couto.
O ministro da Cultura, José António Pinto Ribeiro, estará lá.
No átrio da Biblioteca Nacional estará uma pequena exposição com as três versões manuscritas do Lavagante - Encontro Desabitado mais as duas versões dactilografadas deste texto (feitas entre 1963 e 1968). "Esta obra começou por ter uma grande dimensão e acabou por, na última versão, ser muito mais reduzida", explica Jorge Couto, director da Biblioteca Nacional de Portugal. Ainda no auditório, a seguir à cerimónia de assinatura, a professora e ensaísta Maria Lúcia Lepecki irá apresentar Lavagante, agora publicado nas Edições Nelson de Matos, e enquadrá-lo no contexto da obra do autor.
O espólio de José Cardoso Pires será depois gradualmente entregue à BNP e em Outubro será organizada uma exposição com manuscritos seleccionados e alguma correspondência onde será exposto o que mais de significativo for encontrado. O mês de Outubro, aliás, será consagrado pela Biblioteca Nacional a José Cardoso Pires por causa da comemoração do 10º aniversário do sua morte. "Aí já com o essencial do espólio integrado no Arquivo de Cultura Portuguesa Contemporânea da Biblioteca Nacional de Portugal", diz Jorge Couto.
Até lá as cinco versões de Lavagante, agora entregues, passarão pelo expurgo. Depois os documentos são inventariados, cotados e quando chegar a altura própria serão digitalizados.
Não escrever para a gaveta
Foi há uns anos, quando a Universidade de Roma fez um colóquio sobre José Cardoso Pires que Carlos Reis, que foi director da Biblioteca Nacional, perguntou a Ana Cardoso Pires, filha do escritor, porque é que a família não entregava o espólio à BN. A família nunca tinha pensado nisso.
José Cardoso Pires costumava trabalhar na tal casa que tinha na Costa da Caparica e era no seu escritório que guardava as suas coisas. Depois da sua morte, a família esteve muitos anos sem mexer nelas. Mas havia que tomar uma decisão.
Ana Cardoso Pires começou por mudar o escritório do pai de sítio e arrumar tudo num único espaço. Depois fez o levantamento de todos os livros que estavam na biblioteca pessoal do escritor. Esta catalogação permite saber se determinado livro já constava da sua biblioteca quando estava a escrever determinada obra. "Não se sabe se comprou para aquela data exacta, mas sabe-se que antes não o tinha de certeza", explica a filha.
Quando encontrou "revistas e outras coisas que estavam lá em casa", a sua preocupação foi tentar perceber porque é que o pai as guardou. Muitas delas têm textos do escritor e foi aí, ao ver um número da revista O Tempo e o Modo (de Dezembro de 1963), que percebeu que tinha um inédito em casa - Lavagante. Nessa O Tempo e o Modo havia uma nota a indicar que era "um capítulo do seu próximo romance, ainda provisoriamente sem título". Era parte de um romance que ele iria escrever e que não se concretizou.
"A primeira versão de facto aponta para um romance", explica Ana Cardoso Pires. "É um volume muito maior de informação: era aquele a que chamou Lavagante e a Mulher do Próximo."
Mas isto era habitual no método de trabalho de Cardoso Pires. Escrevia e depois começava a cortar, a cortar o que escrevera. De uma versão para a outra é possível ver os cortes e os riscos.
"A carga política é muito mais intensa na primeira versão. Aí escreve mesmo que há turistas estrangeiros que não vêm para Portugal porque sabem que o país está instável. Depois, quando está a pensar que vai publicar, evidentemente que isto já não aparece no texto. O Zé dizia sempre que não trabalhava para a gaveta. Tudo o que queria era escrever para publicar. E sabia os limites da censura", continua a filha.
Jerónimo que já não é
O livro Lavagante, que era grande no início, vai sendo depurado e muda substancialmente. De umas versões para as outras "é muito interessante ver que muda tudo". Os nomes das personagens, por exemplo. "Há personagens que deixam de ter nome, como Jerónimo (na foto da capa do P2), há casos de outras em que ele muda o nome. Há muitas situações em que se percebe que aquilo dava para o livro apontar completamente para outro caminho e que ele desiste e larga", continua. A determinada altura faz uma marca à volta de um pedaço de texto e aponta ao lado "Para O Delfim". Não se encontrou lá nada que estivesse em O Delfim, mas quando o escritor estava a maturar O Delfim, aquilo podia fazer-lhe falta. Há notas onde se lê: "Pôr tudo no passado."
No entanto, Lavagante era um trabalho completo. O escritor tinha posto um ponto final na última versão. E só foi publicado por isso. Tinha princípio, meio e fim.
No espólio, porém, existe um outro livro, que "só não é um inédito porque nunca será publicado", diz Ana Cardoso Pires. É um livro sobre um Portugal profundo muito rústico que tinha por base a família de Cardoso Pires.
O ficcionista, que foi também jornalista, ensaísta, dramaturgo e crítico literário, ainda desenvolveu bastante esse livro. Existe uma mala cheia de escritos sobre essa questão, conta a filha, mas nunca será publicado. "Não é para publicar, ele nunca publicaria. Disse à minha mãe que aquilo seria "tudo para deitar fora", no sentido de "isto é tudo para recomeçar". Não há livros póstumos do Cardoso Pires. Ele não os deixou, não somos nós que os vamos inventar", diz Ana Cardoso Pires, peremptória.
Mexer num espólio uma coisa muito dolorosa. "É pensar, por exemplo, "porque é que eu não fiz isto quando o meu pai estava vivo"", diz a filha. É ela saber que o pai teria adorado ver tudo organizado. "Porque como ele era naturalmente desorganizado, se ele tivesse as coisas organizadas, se eu tivesse feito de secretária dele, se calhar ele teria pegado noutras coisas."
Há no espólio imensas coisas sobre a PIDE. A grande tristeza do escritor foi "nunca se ter feito o julgamento dos pides, nunca se ter tratado da PIDE a sério". E como ele juntava tudo, ia juntando também coisas sobre a Pide. "Estava tudo tão disperso que tenho a certeza de que depois de estar tudo junto ele lhe pegava. Fosse para crónicas ou para qualquer outra coisa. Assim tão disperso não lhe pegou", lamenta.
José Cardoso Pires era obsessivo com os pormenores. Não queria escrever asneiras. Chateava as pessoas a qualquer hora do dia e da noite. "O Nelson foi um desgraçado, um mártir. Ligava-lhe a meio da noite: "Ó Nelson desculpe, já estava a dormir?" Às vezes às 3 da manhã, é evidente que já estava a dormir. "Era só para lhe perguntar qual era aquele nome, lembra-se, daqueles maços de cigarros que havia?" Era preciso paciência", continua a filha.
O autor de Balada da Praia dos Cães era uma pessoa ternurenta e gostava de oferecer prendas a pessoas especiais. Nelson de Matos, o seu editor desde que este começou a trabalhar na edição, era uma delas.
As caixas como presentes
O escritor ofereceu-lhe numa caixa o manuscrito do romance Alexandra Alpha a que juntou várias peças da produção desse livro. No manuscrito lê-se o título Casos e Vida de alex.alpha e há emendas, manchas no papel. Há outras caixas em posse de particulares. Se a memória não falha à família de Cardoso Pires, a professora Maria Lúcia Lepecki tem uma caixa com Badala da Praia dos Cães e uma poeta do Porto, Marta Cristina de Araújo, terá O Delfim.
Na caixa de Nelson de Matos há também colagens de fotografias que ajudavam o escritor na caraterização das personagens. São fotografias (não são de familiares, podiam ser recortes de jornais) que Cardoso Pires depois modificava, acrescentando bigodes, óculos, e por baixo escrevia o nome das personagens.
"Ele tinha a necessidade de trabalhar com dados realistas", explica Nelson de Matos. De dentro da caixa surgem ainda colagens e montagens feitas pelo autor, um livro em miniatura, um texto sobre um voo em Asa Delta que saiu na revista brasileira Veja ou artigos de jornal que usava para descrições.
Quando Cardoso Pires queria fazer uma descrição de um local ia ao ponto de desenhar um mapa pormenorizado que lá se encontra, de uma perfeição extraordinária.
O editor guarda também uma caixa com notas, recados, "coisas curiosas muito dispersas", bilhetes em que o escritor se dirige a ele como "irmão tolerante e pio"; listas de pessoas a convidar para os lançamentos dos livros e a quem enviar exemplares autografados.
Fazia também muitas notas gráficas que lhe enviava com recados do género: "Este tipo de capitular abrirá o texto do livro." O livro para ele era a escrita e continuava no objecto que se faria a seguir, explica o editor.
Até nas viagens de avião a filha se lembra de ver o pai a ler uma revista e às tantas a cortar uma página. Ou porque tivesse encontrado um fait-divers ou porque encontrara uma explicação de como a formiga fazia qualquer coisa, interessava-se principalmente por factos da natureza. "Isto não lembra ao diabo. Ou levava a revista toda, não ia cortar. Ele fazia isto sistematicamente." Podia chegar a um restaurante e se tinha um papel de mesa com algo engraçado, levava a toalha.
Além disso apontava coisas. Ouvia coisas, pegava numa carteira de fósforos e apontava. Estava a falar com alguém e de repente "começava a olhar feito maluco e pegava no primeiro papelinho e desatava a escrever umas coisinhas com aquela letra muito miúda". A seguir guardava o papelinho na carteira.
Quem sabe se um desses papelinhos não virá a fazer parte da exposição que a Biblioteca Nacional de Portugal vai organizar em Outubro com o que de mais importante se encontra no espólio do escritor.