Karajan, o perfeccionista totalitário

Herbert von Karajan foi o mais célebre e poderoso maestro do século XX, e o mais controverso. Um século depois do seu nascimento em Salzburgo, continua a inspirar paixões avassaladoras e ódios de estimação

a Herbert von Karajan foi um Deus ou um monstro, um mágico ou um ilusionista? Um génio ou um perfeccionista manipulador que soube preparar a eternidade? Em ano de centenário, estas têm sido as perguntas. Figura controversa (mais por questões éticas e políticas do que artísticas), Karajan continua a gerar paixões avassaladoras e ódios de estimação e, apesar de ter morrido há 19 anos, domina o mercado. Em Janeiro, o crítico e escritor Norman Lebrecht intitulava a sua coluna no La Scena Musicale, online, "O monstro e o seu mito" e identificava-o com valores nazis como "a combinação da paixão pelas novas tecnologias com a preferência por uma arte populista e heróica". Mas boa parte das publicações e, sobretudo, o marketing das editoras alimentam o mito. Também entre os músicos que trabalharam com Karajan as opiniões divergem: enquanto o pianista Sviatoslav Richter relata as más experiências na gravação do Triplo Concerto de Beethoven e do Concerto de Tchaikovski, outros como o violinista Augustin Dumay, dão-nos um quadro mais idílico. Há, no entanto, provas inquestionáveis: Karajan foi o mais célebre e o mais poderoso maestro do século XX. Peça-se a qualquer pessoa, mesmo sem hábitos de audição na música erudita, para citar um maestro e a resposta será quase de certeza "Karajan"."Infelizmente nunca cheguei a vê-lo ao vivo, mas durante a minha adolescência Karajan era a sinédoque de maestro. "O" maestro era ele, mesmo mais até do que Bernstein, que a televisão nos deu a conhecer", diz António Jorge Pacheco, coordenador artístico da Casa da Música. "Mais tarde comecei a ler coisas menos simpáticas - o despotismo, a megalomania e as simpatias nazis - e a admiração digamos que esmoreceu, também à medida que outras figuras, como Boulez e Abbado, foram ocupando lugar no meu imaginário." Pacheco reconhece que Karajan tinha um "narcisismo sem limites" mas sublinha que "pelo menos nele a vaidade tinha apoio na perfeita auto-consciência da sua real dimensão de músico: era um superdotado que operava milagres, que não se explicam pelo simples domínio técnico."
O maestro Cesário Costa realça a ligação de Karajan com a Filarmónica de Berlim - "a capacidade de elevar o nível da orquestra de forma absolutamente extraordinária" - e o seu papel pioneiro em relação à importância da imagem. "Percebeu desde cedo as vantagens da imagem e tirou o máximo partido delas, colocou ao mesmo nível o nome do maestro e do compositor." Nos registos em vídeo dos anos 80, há sempre uma luz sobre Karajan, como se se tratasse de um raio de Sol, estudada para conferir uma aura que o distingue dos outros músicos. Cria-se assim a imagem idealizada de que sem o maestro aquela música não faria sentido. Baixo, o que lhe causaria complexos, Karajan usava sapatos de tacão alto para dirigir.
"Temos sempre a imagem do Karajan a dirigir de olhos fechados, numa atitude intimista", diz Cesário Costa. "Era o contrário de Bernstein, que dirigia de uma forma muito exteriorizada e teatral. Mas houve uma evolução. Numa primeira fase ele estabelecia mais contacto visual com os músicos. Só depois se torna o centro da experiência musical."
Para o musicólogo Rui Vieira Nery "é indiscutível o lugar de Karajan como um dos mais importantes intérpretes do século XX". Mas a sua notoriedade tem algo de surpreendente "porque no plano pessoal, ético e cívico gerou sempre muita controvérsia". A adesão ao nazismo não foi um entusiasmo de juventude, diz Nery. "Karajan apostou no nazismo e fez carreira sobre as vítimas da vida musical alemã. Beneficiou dessa política e isso não é irrelevante. Dirigiu orquestras donde foram saneados todos os judeus. Era alguém a quem faltava um cromossoma ético, que hoje consideramos indispensável." Há que reconhecer o precioso legado artístico de Karajan, diz, mas não se pode branquear a figura.
O seu contributo, porém, é muito valioso a vários níveis. "Num contexto interpretativo de tradição romântica foi dos primeiros a fazer música antiga com rigor no sentido de fidelidade à partitura. A sua primeira gravação da Missa em Si menor, de Bach, tem soluções musicais que hoje não seriam chocantes."
Um dos aspectos marcantes é a forma como soube tirar partido das virtualidades do estúdio de gravação e da tecnologia em função do ideal artístico. "Usa a tecnologia com uma total consciencialização", diz Nery.
Perfeccionismo era a regra. "Era de um rigor e exigência extremos na selecção dos colaboradores, as suas gravações era feitas com os maiores cantores e instrumentistas. É o caso da Callas, de Lipati, da Schwarzkopf...", conta Nery.
"Gostava de controlar tudo, tinha muito cuidado com as condições de desempenho. Por isso nunca gostou de se sujeitar a outros programadores. Chegou a tornar-se encenador de ópera para não ter de obedecer a directrizes cénicas. Os resultados nem sempre foram muito bons mas refletem a sua obsessão pelo controlo total."
Também Christoph Dammann, director artístico do São Carlos, sublinha que Karajan "aspirava alcançar a perfeição" e diz que o maestro se interessou por temas de grande diversidade como a arquitectura, a psicologia e a ligação entre o som e a imagem. "É muito importante o lema que nos legou: "Quem atinge todos os objectivos, optou pela fasquia mais baixa.""
Alguns críticos chegaram a acusar Karajan de "vacuidade intelectual" tal era a sua obsessão por aspectos exteriores como o polimento e a beleza do som. "A longa carreira de Karajan mexe-se entre o grande estilo "clássico", herdado de Toscanini, sobretudo nas interpretações dos anos 40 e 50 com a Philarmonia Orchestra de Londres e a Filarmónica de Viena, e o "esteticismo" das interpretações dos anos 60", explica o musicólogo Paolo Pinamonti, director artístico do Festival Mozart de La Coruña e ex-director do São Carlos.

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