Torne-se perito

História do Oriente e do Ocidente

A história do Grande Lama e da sua migração reincarnacionista para outro suporte corporal foi, à data da sua primeira publicação, uma incursão pioneira da banda desenhada no universo do budismo tibetano

Georges BessDesenhador
Georges Bess nasceu em França a 1 de Janeiro de 1957. Inicia a sua carreira aos 23 anos como ilustrador nos países escandinavos, na versão local da revista Mad, colaborando também nos Estados Unidos. Em 1987 Bess regressa a Paris, onde conhece Alejandro Jodorowsky, escritor, cineasta e argumentista de BD. É desse ano a primeira aventura da série O Lama Branco (galardoada com o Grande Prémio RTL da BD), que relata a história de Gabriel Marpa. A colaboração com o criador chileno prolonga-se em outros projectos, como a série Anibal 5 (1990) e Juan Solo (quatro álbuns, 1994), esta última recompensada com o prémio Alph"Art para o melhor argumento, na edição de 1995, do Festival Internacional de BD de Angoulême (França).
Alexandro Jodorowsky
Argumentista
Alexandro Jodorowsky, filho de emigrantes russos, nasceu em Iquique, no Chile, em 1929. O seu primeiro contacto com a BD ocorre em 1965 no México, onde concebe para o desenhador Manuel Moro a personagem Anibal 5 e ilustra durante cinco anos as suas Fabulas Pánicas. Em 1975 conhece Moebius, com quem trabalha numa adaptação cinematográfica de Dune, romance de Frank Herbert. O primeiro resultado da colaboração entre ambos é o álbum Les Yeux du Chat (1978). Dois anos mais tarde, a dupla lança-se na saga do Incal (série John Difool), que é um sucesso e lhe granjeia enorme prestígio. Nos anos seguintes e até à actualidade, Alejandro Jodorowsky multiplica colaborações com alguns dos maiores nomes da banda desenhada mundial.

a De O Incal a Face de Lua, de Alef-Thau a Juan Solo, de Bouncer a O Lama Branco, o tema, o cenário ou os actores das estórias bem podem mudar, mas a realidade essencial que atravessa todas essas criações é sempre a mesma - um olhar singular sobre o mundo e os seres vivos que o habitam, traduzido numa obra múltipla, insubmissa e não acomodada, animada por um sopro vital que é mais fácil de (pre)sentir do que de enunciar de forma racional. No epicentro desse vulcão encontra-se o chileno Alejandro Jodorowsky.
As histórias por ele escritas movem-se em territórios que não coincidem exactamente com a matriz convencional dos géneros explorados. É esse desajustamento, por vezes imperceptível, que faz de Jodorowsky um criador inclassificável, mas evidenciando permanentemente uma força anímica assombrosa.
Ninguém escapa a esse "magnetismo" - basta ler os testemunhos deixados pelos diversos desenhadores com quem colaborou, de M?bius e Boucq ou Bess, passando por Arno, Gal, Janjetov ou Gimenez. Mas não é menos verdade que se torna difícil imaginar que as escolhas pudessem ser outras, com os desenhadores de cada série a potenciarem, pelo seu traço, sensibilidade e inteligência, a magnificência de cada obra.
Poderia dizer-se de Jodorowsky que nada do que é humano lhe é alheio. Por isso, as suas histórias são outras tantas experiências heróicas de descida aos infernos, numa vertigem que ninguém pode afirmar que será seguida de uma qualquer redenção. Os heróis do argumentista, cineasta e romancista chileno encontram-se exactamente no ponto de confluência do que de melhor, mas também de pior, existe na condição humana. Nesse sentido, eles nunca são inteiramente "maus" ou esplendorosamente "positivos", mas apenas criaturas imperfeitas que trilham os muitos e insondáveis caminhos do mundo.
Em O Lama Branco, obra da qual se apresentam neste álbum os dois episódios iniciais, confirma-se de novo o brilho da personalidade enigmática e apaixonante do argumentista, figura tutelar desta série de recorte orientalista que tão vivamente impressionou os leitores europeus quando surgiu.
Os relatos de Alexandra David-Neel, uma das primeiras mulheres ocidentais a chegar a Lhassa, capital tibetana, nunca estão muito longe. E o que ressalta com vigor é o choque de culturas e civilizações em que a narrativa se inscreve, com as consequências que daí advêm para todos.
Tudo isto fez com que a história do Grande Lama e da sua migração reincarnacionista para outro veículo corporal tenha sido, à data da sua primeira publicação, uma incursão pioneira da banda desenhada no universo do budismo tibetano.
Se hoje esse fenómeno já não surpreende ninguém pela dimensão da "diáspora" - recorde-se que a invasão do Tibete pela República Popular da China teve como consequência uma expansão nunca vista da cultura tibetana pelo mundo, e em particular do budismo tibetano -, talvez ele não fosse tão óbvio há quase 20 anos, quando a dupla Bess-Jodorowsky publicou os dois primeiros episódios de O Lama Branco. E daí o seu impacto particular. A revisitação desta obra permite constatar que ela não perdeu frescura, conservando a intemporalidade que é apanágio das grandes criações.

Foi no já distante ano de 1983 que a Editorial Futura revelou pela primeira vez ao público português O Incal Negro (desenho de Moebius), primeiro álbum de uma série que o mesmo editor continuaria a publicar até 1987. Esta criação seria ainda divulgada pelo Jornal da BD (1982-1987). A divulgação em Portugal da obra de Bess-Jodorowsky é mais recente: os dois primeiros álbuns da série O Lama Branco, assim como os dois primeiros episódios da série Juan Solo, foram publicados pela Asa em 2002 e 2003.

(Pesquisa de datas: Leonardo de Sá)

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