Torne-se perito

José Rodrigues dos Santos, o Venturoso

Há pessoas assim: vão em frente. José Rodrigues dos Santos é uma delas. Com entusiasmo e iniciativa conseguiu um contrato com o grupo HarperCollins para editar em língua inglesa dois dos seus romances. O Codex 632 chega às livrarias norte-americanas em Abril e A Fórmula de Deus acabou de ser comprado. Cortaram cenas de sexo, minúcia histórica
e toda a comida. Por Isabel Coutinho

a Já foi considerada "uma das piores cenas de sexo de toda a literatura portuguesa" e deu debate sem fim na blogosfera. Sabem do que falamos? Está nas páginas 161 e 162 da edição portuguesa de O Codex 632 de José Rodrigues dos Santos (ed. Gradiva). Trata-se de uma fantasia erótica com sopa de peixe. Uma conversa que descamba em sexo entre o professor Tomás e a sua aluna sueca - enquanto ele trinca um pedaço de peixe que lhe parece abrótea, temperada pelo líquido branco do caldo. ""Quando um dia for casada e tiver um filho, vou fazer uma sopa de peixe com o leite das minhas mamas."
Tomás quase se engasgou com a sopa.
"Como?"
"Quero fazer uma sopa de peixe com o leite das minhas mamas", repetiu ela, como se dissesse a coisa mais natural do mundo. Colocou a mão no seio esquerdo e espremeu-o de modo tal que o mamilo espreitou pela borda do decote. "Gostava de provar?""
Ficamos por aqui, mas a cena continua. Com "uma erecção gigantesca a formar-se-lhe nas calças"; "um largo mamilo rosa-claro e a ponta arrebitada e dura como uma chupeta" e ainda "inclinou-se sobre o seu regaço e encheu a boca". Ou palavras como "chupar-lhe", "mamava" e, por fim, "gemeu".
O livro que vendeu 160 mil exemplares em Portugal tem os direitos vendidos para a Polónia, Roménia e Estónia. Já está publicado em Espanha, Brasil, Itália, nos EUA em língua espanhola (na chancela Rayo da HarperCollins) e a cena ficou sempre lá. Nunca foi cortada. Até agora. No dia 1 de Abril o livro de José Rodrigues dos Santos Codex 632 - The Secret Identity of Christopher Columbus vai ser publicado em língua inglesa na William Morrow, uma das principais chancelas do grupo HarperCollins nos Estados Unidos, mas a cena que mistura comida e sexo desapareceu.
Houve uma intervenção no texto feita pelos responsáveis da editora americana em conjunto com o autor. "Um processo muito normal na América", explica José Rodrigues dos Santos. Mas o editing aconteceu sempre tendo em conta a sua opinião. "O livro é do autor", diz.
Quando escreveu este romance Rodrigues dos Santos não estava a pensar no mercado internacional. Fê-lo "formatado para o mercado português, com particularidades portuguesas" - diz. Até aqui todas as editoras estrangeiras mantiveram tudo na íntegra. A única que trabalhou o texto foi a americana na sua versão em língua inglesa. Lutaram contra as especificidades portuguesas e europeias. Disseram-lhe que na América era desastroso colocar nos romances personagens a comer. Que ninguém o fazia por não agradar ao público norte-americano. "Andaram a eliminar as referências a tudo o que era comida e nos meus romances há muita comida."
A cena de sexo do romance suscitou um grande debate. "Acharam que era muito forte. "Uma parte do público aceita mas outra é puritana", disseram-me. Iria criar resistências desnecessárias ao livro."
Alteraram também a parte do romance onde o escritor expõe uma por uma as "provas" genovesas, "aquilo é muito minucioso, quase já trabalho de historiador". Disseram que era muito pesado, que as pessoas não iam aguentar e reduziram às principais. "Isso roubou umas páginas valentes ao livro", que na sua versão em língua inglesa parece metade da edição portuguesa.
Em termos de caracterização de personagens perdeu-se alguma coisa? "Não, não", afirma Rodrigues dos Santos, que não aceitou todas as propostas dos editores norte-americanos.
Ficou melhor?
Tomás, a personagem principal, é casado, tem uma filha com síndroma de Down e envolve-se com uma aluna. Pediram-lhe para suavizar a relação de Tomás com a amante. Queriam que os leitores se identificassem totalmente com a personagem e achavam que as mulheres não se iam identificar com ele. "Não quis fazer uma personagem Hollywoodesca. Quis fazer uma personagem que tem problemas na vida e é imperfeita. Todos temos defeitos, a vida é assim, quis dar-lhe humanidade e alguma profundidade. Os leitores podem não aprovar tudo o que ele faz mas reconhecem-se numa pessoa humana em vez de uma personagem que é um mar de virtudes", defendeu o autor. Os americanos releram e mantiveram o que estava. Também discutiram o final do livro, mas acabou por não ser alterado.
Considera que ficou um livro melhor? "Está melhor para o mercado americano mas não para o mercado português."
Não é habitual, mas graças a uma ideia de José Rodrigues dos Santos, jornalistas americanos estiveram em Portugal a visitar os locais da acção de O Codex 632, romance sobre a "verdadeira" identidade e missão de Cristóvão Colombo. O autor quis que percebessem o que há ali de real. "Quando falo de certas coisas podem pensar que é ficção. Lêem a história dos templários e do Santo Graal e vão pensar que é O Código Da Vinci. Têm que perceber que não é, têm que perceber que é real."
A editora americana já o tinha feito com um autor islandês levando jornalistas até Reiquiavique mas desta vez contou com o apoio da TAP em conjunto com AICEP, Turismo de Portugal e Turismo de Lisboa. Rodrigues dos Santos convenceu as entidades portuguesas a apoiar a iniciativa porque o romance tratava dos Descobrimentos portugueses e iria atrair turismo para o país. (Na semana anterior um grupo de jornalistas italianos esteve em Coimbra a ver os sítios da acção de A Fórmula de Deus, publicado agora em Itália pela Cavallo di Ferro.)
"Algumas publicações americanas têm regras muito específicas sobre viagens de imprensa. Não aceitam viagens organizadas pelas editoras para não serem influenciados", explica Brianne Halverson, a senior publicist da HarperCollins que acompanhou o grupo a Portugal - composto por Matthew Price, Daniel Asa Rose, Marilyn Dahl, Aron e Judith Hirt-Manheimer, Samuel Clover e Suzan Sherman. Por isso, escolheram jornalistas freelancer que estariam em condições de aceitar a oferta da viagem e especialistas em judaísmo, com interesse em Portugal e nos temas que o livro aborda. Nos EUA, o género ficção histórica continua a fazer sucesso, daí esta aposta da HarperCollins na obra O Codex 632. "José é um escritor com carisma e aborda o tema de Colombo, uma figura importante na nossa história, de uma forma diferente daquela que os americanos conhecem. A intriga, as suas origens, a sua religião é tudo fascinante", afirma Brianne Halverson.
Regaleira e sinagoga
Durante três dias os jornalistas americanos obedeceram a um programa intenso de visitas ao Castelo de São Jorge, Mosteiro dos Jerónimos, Torre de Belém, Padrão dos Descobrimentos, à misteriosa Quinta da Regaleira, em Sintra, passando pelo Convento de Cristo, em Tomar. O escritor e uma equipa do turismo foram incansáveis em explicações em inglês sobre reis, navegadores, caravelas, Camões e Pessoa, história dos monumentos e judeus marranos.
Inseparável do seu chapéu, Daniel Asa Rose - que trabalha para o New York Observer, New York Magazine, Salon e foi um dos últimos jornalistas a entrevistar Norman Mailer - queria descobrir pormenores da cena de sexo que tinha sido cortada da versão americana. Sempre quis conhecer Lisboa, já tinha estado nos Açores e não ficou desiludido. Tornou-se uma das suas cidades preferidas. Entre noites de fado, pastéis de Belém e solavancos dentro de uma camioneta confessou que não é fã nem costuma fazer recensões a livros de mistério ou thrillers, mas o que lhe agradou em O Codex 632 (na altura ainda não tinha lido até ao fim) foi a dimensão histórica. Gostou da dimensão "gigante" deste puzzle porque, diz ele, não tem paciência para puzzles pequenos. Já tinha ouvido rumores relacionados com a história contada por Rodrigues dos Santos no livro. Ouviu dizer que na tripulação da viagem que levou à descoberta da América ia um cartógrafo judeu, mas nunca tinha ouvido nada em relação à identidade judia de Colombo e estava fascinado com a ideia do judeu marrano.
Que ao livro do autor português possa ser dada alguma atenção nos EUA acredita Marilyn Dahl que já trabalhou na Amazon. Para isso contribui o título, o falar dos templários, de coisas secretas e a ligação ao judaísmo, considera a actual editora do Shelf Awareness (um importante website sobre a indústria editorial). Tem pena que o livro tenha sido tão editado pois "se calhar na edição portuguesa há mais caracterização das personagens".
Apesar de não ser a sua primeira vez em Portugal e dos seus cabelos brancos, Marilyn não sabia nada sobre a história da Inquisição nem sobre a ligação entre Espanha e Portugal. No final da viagem só queria ir para casa e saber mais. O mesmo aconteceu a Matthew Price, formado em História (trabalha para o Boston Globe e Newsday). Ao chegar a casa ia comprar imensos livros sobre os Descobrimentos portugueses.
Suzan Sherman que escreve para jornais judaicos (The Forward, Jerusalem Report) mostrava admiração, com toda a intensidade dos seus olhos verdes, pela forma como Rodrigues dos Santos conseguiu "analisar todo o material histórico disponível e transformá-lo numa obra de ficção de uma forma plausível".
A chegada à América
Curioso é o processo que levou à publicação deste livro na América. José Rodrigues dos Santos procura sempre avaliar quem é a editora que quer comprar os seus livros e o que quer fazer com eles. Quer que sejam edições mainstream, não quer que os seus livros vão parar a um cantinho das livrarias. Prefere "ter menos tradução mas bem apostada, do que muita tradução ignorada".
A sua editora portuguesa, a Gradiva, ainda antes do romance estar terminado, contactou o grupo americano na Feira do Livro de Frankfurt para lhes mostrar uma sinopse. Quando O Codex 632 saiu em Portugal, Rodrigues dos Santos descolou-se à sua custa aos escritórios da HarperCollins em Nova Iorque para apresentar o livro. Apesar de lhe dizerem que não tinham leitores de português, deixou um exemplar em português.
Semanas depois uma das editoras principais da HarperCollins, que se interessava por Colombo e lia fluentemente espanhol, pediu-lhe uma edição do livro em espanhol. Rodrigues dos Santos lembrou-se de um e-mail que em tempos um leitor lhe enviara. Era de Alan Cuzier, um irlandês a viver na Suécia, que passava férias em Portugal e apesar de não saber falar português viu O Codex 632 no aeroporto - "teve um acto de loucura" - e comprou o livro. Com um dicionário de português-inglês e a ajuda do espanhol que sabia de há 50 anos leu-o, demorou dois meses, mas conseguiu.
Rodrigues dos Santos reenviou esse e-mail e acrescentou: "Se este irlandês conseguiu ler o meu livro, você se é fluente em espanhol certamente consegue." "Vou tentar este fim-de-semana", respondeu-lhe ela e o autor nunca mais recebeu notícias suas.
Até ao dia em que Howard Morhaim, o seu agente americano, lhe telefonou admiradíssimo. A HarperCollins tinha feito uma proposta "muito acima da média para um autor americano quanto mais para um não-americano, nem sequer de língua inglesa". Além disso queriam dar-lhes um prémio para que não mostrassem o livro a outra editora. "O meu conselho é aceite-se já", disse-lhe Howard Morhaim. Aceitaram.
O Codex 632 foi originalmente comprado pela Rayo, uma chancela da HarperCollins para o mercado de língua espanhola nos EUA. Saiu em 2007 com o título El Codice 632 - Una novela sobre la identidad secreta de Cristóbal Colón e nessa edição mantiveram a cena de sexo e a "sopa de pescado con la leche de mis tetas". Entretanto o grupo editorial avaliou o potencial do livro e decidiu transferi-lo para outra chancela mais importante, a William Morrow, onde irá agora sair em inglês, versão hardcover.
José Rodrigues dos Santos não revela o que ganhou com a venda do livro, mas sempre diz: "É um valor superior ao que recebi de todas as outras editoras estrangeiras por todos os livros juntos. Foi uma proposta acima do normal."
Quando há duas semanas o agente literário americano de José Rodrigues dos Santos lhe telefonou a informar que recebera outra proposta da HarperCollins, desta vez para a compra de A Fórmula de Deus, um dos seus outros romances, o escritor ficou "boquiaberto". Acreditem nesta história, tal como no tempo dos Descobrimentos, há um espírito afortunado.

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