Max von Sydow morre na página 25
Não há um antes e um depois de Bergman: é tudo depois. Ele ainda é o que Bergman fez dele em O Sétimo Selo e nas 12 vidas que teve a seguir
a Max von Sydow teve 13 vidas no cinema agora desabitado de Ingmar Bergman mas essa "experiência" (fala disso com tanto pudor que chegamos a imaginar a família a que pertenceu em tempos, a que ainda pertence, como uma sociedade secreta - quando a questão, se quisermos ir por aí, é que aquilo que eles tinham um com o outro era uma coisa "enigmática", "irracional") não é um daqueles casos em que o cinema é maior do que a vida, é um daqueles casos em que a vida é maior do que o cinema. 51 anos depois de O Sétimo Selo, o filme em que Bergman o pôs a jogar xadrez com a morte e a perder (mas a perder depois, muito depois da página 25), ainda não lhe aconteceu nada que seja comparável a ter sido uma das figuras insubstituíveis dessa iconografia, apesar de lhe ter acontecido trabalhar com John Huston (The Kremlin Letter e Fuga para a Vitória), Sydney Pollack (Os Três Dias do Condor), Steven Spielberg (Relatório Minoritário), David Lynch (Dune), Wim Wenders (Até ao Fim do Mundo), Lars von Trier (Europa), Bertrand Tavernier (A Morte em Directo) e Woody Allen (Ana e as Suas Irmãs). Woody Allen? "Foram duas semanas. Não é possível comparar duas semanas de Woody Allen com 20 anos de Bergman. Não seria justo". Julian Schnabel (fizeram O Escafandro e a Borboleta no ano passado)? "Sim, um realizador magnífico, mas de novo: foi um dia de trabalho. Não posso comparar Bergman com nada. Foi o único cineasta com quem trabalhei continuamente. Fui terrivelmente mimado", diz ao P2 minutos depois da conferência de imprensa que deu no Fantasporto, que lhe atribuiu na segunda-feira um prémio de carreira (e uma das standing ovation mais memoráveis da história do festival).
Tem 78 anos, agora, na vida real (nasceu a 10 de Abril em Lund, na Suécia). Teve 92 anos em O Escafandro e a Borboleta. É um velho, e este cinema não é para velhos: "Que papéis é que me oferecem, por estes dias? Avós - pais, na melhor das hipóteses. E os avós estão sempre muito doentes no início do filme e depois morrem na página 25". Não foi o cinema de Bergman (de quem também foi avô, em As Melhores Intenções, de Bille August) que fez dele um velho. Mas foi o cinema de Bergman que fez dele um actor "impressionantemente alto e impressionantemente estrangeiro": "Em 1957 eu entrei num filme de Bergman e Hollywood apercebeu-se da minha existência. E em Hollywood eu fui sempre o estrangeiro. Os estrangeiros dão bons vilões com sotaques sinistros. Eu dei um bom vilão". Também deu um bom padre: "Trabalhei com o Bergman e os americanos olharam para aquilo e disseram: "Ah, cá esta: um realizador sueco, hum, sério - religioso. E este actor, hum, ali faz de cruzado - religioso.
O que é que acontece a seguir? Convidam-me para fazer de Jesus e eu acabo a fazer de Jesus em A Maior História de Todos os Tempos. E depois os produtores, que não têm muita imaginação e se preocupam demasiado em não perder dinheiro, jogam pelo seguro: se precisam de um padre, procuram actores que já tenham feito de padre, de preferência com algum sucesso, e encontram o Max von Sydow. E então o Max von Sydow faz de cruzado, de Jesus, de padre, de bispo, de papa e de vigário. Tive de pôr um ponto final nisso. Há algum tempo que deixei de aceitar papéis desses". Há algum tempo, mesmo: em 1982, já não quis ser o bispo de Fanny e Alexandre (e agora lamenta não ter estado lá, na última grande fotografia da família Bergman).
Em casa com Bergman
Max von Sydow estava completamente "em casa" nesse cinema de mulheres que era o cinema de Ingmar Bergman - tão completamente que Bergman o chamou para participar nos três filmes que rodou na ilha de Fårö (A Hora do Lobo, Vergonha e A Paixão de Ana), para onde foi viver a perfeita vida sueca depois de esvaziar o apartamento de Estocolmo. Aconteciam coisas nessas filmagens que nem ele nem Bergman alguma vez conseguiram explicar: "São matérias que se movimentam num nível muito irracional: era uma relação de trabalho mas também era uma relação de amizade. E também era uma questão de profunda admiração. É difícil falar sobre isso, foi demasiado importante para mim. Particularmente durante os 20 anos que passámos juntos, mas também agora, a esta distância. Eu fiz-me ali", explica von Sydow.
Ainda hoje, meio ano depois da morte de Bergman, há coisas em que parecem de facto carne da mesma carne e sangue do mesmo sangue. Temos de ler esta frase até ao fim para perceber quem anda aqui: "Tínhamos uma relação enigmática, nós. Ele foi tremendamente importante para mim. O exibicionismo que há agora nos filmes vai passar, acho eu: com o tempo, as pessoas vão voltar a respeitar o desprendimento subtil que há entre Max e os meus loucos. Se esse desprendimento não existisse os meus filmes teriam sido insuportáveis. Isto é cinema: um actor não tem de ser um louco, tem de agir como um louco". Terça-feira à tarde, no Fantasporto, Max von Sydow falou e voltámos a ouvir a voz de Bergman: "Tanto me faz ser o bom ou o vilão. Não temos de gostar das personagens que representamos: o actor não é aquela pessoa, apenas age como ela".
Ser um homem naquele cinema de mulheres "não era assim tão diferente de ser um homem na vida real": estar naquele cinema é que era "diferente": "Ele tinha a extraordinária capacidade de conseguir que os actores e a equipa fossem entusiastas do projecto. E tinha também uma disciplina de trabalho muito rígida, com a qual acho que todos aprendemos, e que é profundamente produtiva para este tipo de trabalho - e que era determinante do teatro". Max von Sydow e Ingmar Bergman conheciam-se desse outro mundo mais radical e mais primitivo - Bergman viu-o em A Rosa Tatuada, de Tennessee Williams, numa produção do Teatro Municipal de Helsinborg, e quis trabalhar com ele imediatamente. "Não sei porquê, mas por alguma razão eu não me via como actor de cinema. Já tinha feito dois ou três filmes [o primeiro, Bara en Mor, de Alf Sjöberg, foi em 1949], mas mantive-me nos teatros municipais por mais nove anos. Quando decidi ser actor, decidi ser actor de teatro". E foi, contra a ordem natural das coisas: "Cresci numa pequena cidade no Sul da Suécia onde havia um ou dois cinemas, mas nenhum teatro. Não era uma coisa que interessasse aos meus pais: eram muito antiquados. O meu pai tinha 50 anos quando eu nasci. Era um professor universitário, e tenho a certeza de que tinham planeado para mim uma coisa dessas, uma carreira académica. Mas quando eu tinha 14 anos uma cidade vizinha abriu um grande e moderno teatro municipal e a escola onde eu andava levou os alunos a ver o Sonho de Uma Noite de Verão. Para mim foi uma revelação total".
Nos planos de Scorsese
Ainda prefere o teatro - já não tem é a disciplina. "Sou demasiado preguiçoso. Não quero ficar preso a um projecto que me obrigue a estar no mesmo sítio meses a fio. Uma peça bem-sucedida pode ficar em palco para sempre. É demasiado tempo. Nesta fase prefiro estar dois dias num filme e depois reconquistar a liberdade", admite.
Não ficou demasiado tempo no Porto, também. Dois dias (sempre com a mulher, a francesa Catherine Brelet: nunca estão a mais de dois metros de distância desde que se casaram na Provença e ele passou a ser francês). Mais dois em Santiago de Compostela, mais dois em Nova Iorque onde Martin Scorsese tem planos para ele (quais?, perguntámos, mas ele não disse: "Ainda não se pode falar sobre isso"). Amanhã, quando começar a retrospectiva Max von Sydow no Fantasporto, ele já está do outro lado do mundo a saber em que página morre no cinema de Scorsese. No programa do Fantasporto só morre depois de Morangos Silvestres, de Bergman (amanhã, às 19h15), Flash Gordon, de Mike Hodges (domingo, às 15h15), Non Ho Sonno, de Dario Argento (dia 3, às 15h15), O Sétimo Selo, de Bergman (dia 7, às 21h), e Europa, de Lars von Trier (também dia 7, às 23h). Estivemos a contar: é na página 26. Quando Max von Sydow falha, falha por pouco.