Reichstag O incêndio do século XX
O incêndio do Reichstag, na noite de 27 de Fevereiro de 1933, foi um dos mais impressivos acontecimentos do século XX. Não mudou a História, mas acelerou dramaticamente
a montagem do sistema totalitário de Hitler. Ainda hoje encerra algum mistério
a Ainda com o Reichstag (parlamento alemão) em chamas, na noite de 27 para 28 de Fevereiro de 1933, a polícia prendeu um jovem holandês de 24 anos, Marinus van der Lubbe. Foi apanhado de tronco nu, ateando pequenos focos de incêndio. Desempregado, tinha chegado a Berlim dez dias antes. Fizera parte das Juventudes Comunistas holandesas, que teria abandonado em 1931. Reivindicou o incêndio e disse ter agido sozinho. Foi esta a opinião dos polícias que o interrogaram e o tomaram por desequilibrado. Terá dado a entender que queria fazer algo de grandioso para sublevar a classe operária alemã e teria já falhado duas tentativas de fogo posto.
Os líderes nazis começaram por interpretar a acção como o sinal de uma insurreição comunista, ou nas palavras de Goebbels, como uma "última tentativa, através do fogo e do terror para semear a confusão e criar o pânico para deitarem a mão ao poder." Goering alimentou a efabulação: deputados comunistas teriam sido vistos a fugir do Reichstag durante o incêndio.
Imediatamente surgiu a tese oposta, largamente difundida no estrangeiro e na oposição alemã, segundo a qual o incêndio teria sido ateado por um destacamento das Secções de Assalto (SA) nazis que teria entrado no Reichstag por um túnel que partia da residência de Goering - ministro do Interior da Prússia e futuro número dois do III Reich.
Segundo uma versão complementar, as SA terão manipulado o holandês. "Van der Lubbe, o incendiário do Reichstag, agiu sob ordem de Hitler", titulou L"Humanité, o jornal comunista francês. Era a versão mais razoável.
Ainda hoje é tema de batalha. Em 1962, o alemão Fritz Tobias, social-democrata e historiador amador, publicou uma série de artigos na Der Spiegel mostrando que tanto a tese da autoria comunista como a da autoria nazi não resistiam à prova. Acusado de "revisionismo", foi apoiado por historiadores como Hans Mommsen. Muitas Histórias e dicionários continuam hoje a sustentar a tese da maquinação nazi.
O historiador Ian Kershaw (Hitler, 1889-1936, Hubris) não tem dúvidas em confirmar a primeira investigação policial e o que Marinus repetiu nos interrogatórios e no julgamento: agiu sozinho.
Hitler, diz Kershaw, teve uma reacção de surpresa e histeria. Terá dito: "Isto é um sinal de Deus." Tinha acabado de encontrar o meio de aniquilar a oposição a uma semana das eleições.
Van der Lubbe foi decapitado a 10 de Janeiro de 1934. No dia 10 de Janeiro de 2008, um tribunal superior alemão anulou a sentença por assentar sobre "fundamentos injustos, especificamente nacional-socialistas". Nunca teve sepultura. Hoje, Marinus é um mártir celebrado em sites anarquistas na Internet.
Revolução legal
Hitler fora nomeado chanceler a 30 de Janeiro. O seu nome foi imposto ao decrépito Presidente Hindenburg, por uma manobra de bastidores, orquestrada por um político de direita, Fritz von Papen. Alguns imaginaram que a melhor forma de neutralizar Hitler seria colocá-lo no governo. Os seus seguidores eram mais lúcidos: celebraram o 30 de Janeiro como uma ruptura histórica.
Walther Funk, na altura porta-voz de Hitler, declarou aos correspondentes britânicos: "Meus senhores, tenham noção de que o facto brutal da ascensão de Hitler ao poder não marca apenas uma mudança de governo, mas uma mudança do regime na Alemanha."
Não cabe aqui narrar a ascensão do nazismo nem o estado da sociedade alemã. Diga-se apenas que o sistema político estava "podre" e que nas ruas se vivia um clima de guerra civil, com milícias armadas de quase todos os partidos, da direita e da esquerda, a confrontarem-se diariamente com dezenas de mortos. Só as SA e as SS de Hitler tinham 400 mil homens.
O Partido Nacional Socialista Alemão dos Trabalhadores (NSDAP) emergiu como um poderosa força eleitoral nas legislativas de Setembro de 1930, obtendo 18,3 por cento dos votos. Em Julho de 1932, atingiu o apogeu, com 37,4. Baixou para 33,1 nas eleições de Novembro seguinte. Tão importante como os números é o fascínio que Hitler começa a exercer sobre as elites.
A oposição de esquerda era forte. Mas comunistas e sociais-democratas eram adversários entre si. Em particular, a Internacional Comunista nunca entendeu o carácter revolucionário do nazismo: encarava-o como um fascismo ao serviço do grande capital. Tratava os sociais-democratas por sociais-fascistas.
Para governar, Hitler fez uma coligação com o Partido Nacional Popular Alemão (DNVP), de Hugenberg, um magnata de imprensa, e Von Papen. Exigiu a dissolução do Reichstag e marcou eleições para 5 de Março.
Não perdeu tempo. Começou a montar a ditadura no quadro de uma "revolução legal" (Karl Dietrich Bracher, La Dictature Allemande). Com a dissolução (1 Fevereiro), passa a governar por decreto. A 4 de Fevereiro, limita drasticamente a liberdade de imprensa, interditando numerosos jornais. Trata a seguir de cercear a autonomia da Länder, na via de um Estado centralizado. Assume o pleno controlo da polícia. Multiplicam-se as acções violentas das SA e SS.
A vertigem de 1933
É o incêndio do Reichstag que dá a Hitler a alavanca final: a 28 de Fevereiro, obtém de Hindenburg o decreto de "Protecção do Povo e do Estado", que suprime as liberdades constitucionais. É a legalização do terror e do arbítrio.
As eleições realizam-se num clima de intimidação e pavor. Mas, dado o clima reinante, "a violência e a repressão tornam-se globalmente populares", assinala Kershaw. "A lei de emergência que anulou as liberdades pessoais e estabeleceu uma plataforma para a ditadura foi calorosamente saudada."
A 5 de Março, o NSDAP obtém 43,7 por cento dos votos. É o maior partido. Aliado ao DNVP, de Hugenberg, tem a maioria absoluta, mas não os dois terços para mudar a Constituição. A 22, cria o primeiro campo de concentração, em Dachau, para comunistas, judeus e "associais". Dez mil comunistas e socialistas serão presos em Março e Abril.
Reportou o New York Times (21 de Março): "Tudo isto constitui um extraordinário espectáculo para uma nação tão orgulhosa da sua cultura. (...) O regime nazi excita as mais baixas paixões da multidão como um instrumento de alta política. (...) É um espectáculo tão repugnante que o espírito hesita em o aceitar com medo de o não poder suportar por mais tempo."
A prisão dos 81 deputados comunistas e de 11 socialistas consolida a sua maioria parlamentar. A 23 de Março, as oposições, designadamente a católica, capitulam e o Reichstag concede-lhe "plenos poderes", por 441 votos contra 94 (sociais-democratas). Passa-se à "ditadura legal".
Doravante, o incêndio do Reichstag torna-se irrelevante. É a máquina de Hitler em marcha inexorável. A 31, é anulada a autonomia dos Länder. A 1 de Abril, os nazis lançam o boicote das lojas de judeus. Três dias depois, são criados os tribunais de excepção. A lei da função pública permite depurar a administração de judeus e adversários políticos. É a primeira vez que o anti-semitismo é consagrado em lei.
São dissolvidos os sindicatos e imposta uma nova organização, a Frente Alemã do Trabalho. Escolas, rádios, jornais e o cinema são colocados ao serviço da nova ordem.
A 11 de Maio, são queimados 25 mil livros em frente da Universidade de Berlim. A 14 de Julho, o NSDAP é elevado a partido único, o SPD é dissolvido, tal como o Zentrum católico e o ex-aliado DNVP, doravante inútil. A 14 de Outubro, o Reichstag é dissolvido e, com as eleições de 12 de Novembro, o NSDAP ocupa todos os lugares.
A lei de 1 de Dezembro instaura a unidade entre partido e Estado: já não é a "ditadura legal" mas o princípio do Estado totalitário, que será concluído em 1934. Só raros suspeitavam do que estava para vir.
O "complexo de Eróstrato"
Em 356 a.C, um jovem grego, Eróstrato, incendiou o templo de Ártemis, em Éfeso, uma das sete maravilhas da Antiguidade. Não se achava com talento para alcançar a imortalidade por outra forma, diz a lenda. Os juízes, além de o condenar à morte, mandaram apagar o seu nome de todos os registos, de forma a cortar cerce a sua aspiração à fama. Inútil, até contraproducente, porque o nome de Eróstrato sobreviveu, graças a Estrabão.
Nunca saberemos se Marinus van der Lubbe perseguia a glória, se queria ingenuamente amotinar a classe operária ou se foi um mero pirómano.