1942-2008 Madalena Barbosa A incansável feminista
Milena, como lhe chamavam, fez da militância profissão e da igualdade a causa de uma vida.
A última homenagem surge em forma de livro, uma compilação dos seus textos, lançado hoje
a Elas chamavam-lhe Milena. Elas, porque a militância feminista em Portugal tem sido um exclusivo das mulheres. Madalena Freire de Avelar Barbosa, o seu nome verdadeiro, mudou a sua vida, fez do activismo profissão e da igualdade a maior causa. Morreu ontem, a semanas de fazer 66 anos, com um cancro.O nome de Madalena Barbosa aparece associado a todos os movimentos, grupos e associações que, em Portugal, se bateram e se batem ainda pela igualdade de direitos entre mulheres e homens.
Técnica da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género - que antes foi Comissão para a Igualdade e os Direitos das Mulheres e antes ainda Comissão da Condição Feminina, mudanças de nome que Madalena Barbosa acompanhou -, teve um percurso tradicional até ao 25 de Abril. Nascida em Faro, casou aos 18 anos, em Angola, onde cresceu. As duas filhas mais velhas nasceram na ex-colónia.
Após o regresso a Lisboa, em 1964, teve mais quatro filhos, dois rapazes e duas raparigas. "Podia ter optado por ser dona de casa, era casada com um marido com dinheiro, podia ter tido uma vida sossegada", diz a escritora Maria Teresa Horta. Mas optou por desconstruir "a ideia de que a feminista não tem a ver com família, com filhos, com amor".
Madalena Barbosa foi exclusivamente dona de casa e mãe de família até ao 25 de Abril, altura em que se juntou à multidão que esperava a libertação dos presos políticos de Caxias. "O 25 de Abril deu a volta à Madalena, como a centenas de mulheres portuguesas", recorda Teresa Horta.
A 7 de Maio, Madalena Barbosa está entre o grupo de apoio às "Três Marias" (Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa), que eram julgadas pela obra Novas Cartas Portuguesas, no Tribunal da Boa-Hora. Era a última sessão do julgamento e o resultado foi a absolvição.
No final, um grupo de mulheres, entre as quais Madalena Barbosa, junta-se em casa de Isabel Barreno. É nessa noite que nasce o Movimento de Libertação da Mulher (MLM), a primeira estrutura feminista portuguesa organizada, que ocupa uma casa na Pedro Álvares Cabral, em Lisboa, a partir da qual reclama a igualdade de oportunidades, o direito ao divórcio, a gratuitidade dos métodos contraceptivos e a despenalização da interrupção voluntária da gravidez - uma das causas a que mais se dedicou.
É aqui que a vida de Madalena Barbosa toma outro rumo. E é preciso ter em conta que "a capacidade de rebelião de uma mulher, de fuga às normas, sempre foi menor do que a dos homens", recorda a ensaísta Isabel Barreno.
Madalena Barbosa divorcia-se e vai estudar. Entra na Faculdade de Letras de Lisboa, no ano lectivo de 1979/80, por exame ad hoc, para cursar História. A decisão é tomada em conjunto com a historiadora Irene Pimentel (Prémio Pessoa 2007), de quem já era amiga e com quem fez muitos trabalhos em conjunto. "Fomo-nos empurrando uma à outra", lembra Pimentel.
Os estudos não ficaram por aqui. Aliás, Madalena Barbosa manteve a preocupação de se actualizar constantemente - procurando, como frequentemente dizia, enquadrar a luta pela igualdade em Portugal no contexto global.
Invisibilidade e tectos de vidro: representações do género na campanha eleitoral legislativa de 1995 no jornal Público foi o título da sua tese de mestrado em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação, no ISCTE. Na comissão estatal responsável pela protecção e promoção da igualdade, Madalena Barbosa dirigiu, coordenou e elaborou vários estudos sobre as mulheres em Portugal, que estiveram na base de medidas legislativas nas áreas dos direitos humanos, trabalho, pobreza e sexualidade. Representou Portugal, nomeadamente nas reuniões das Nações Unidas sobre direitos das mulheres, e a União Europeia em várias cimeiras e conferências internacionais. Foi responsável pela preparação das questões da igualdade durante a presidência portuguesa da União Europeia e do Ano Europeu da Igualdade de Oportunidade para Todos.
A homenagem
A intervenção de Madalena Barbosa estendeu-se à política - autodefinia-se como socialista. Filiada no PS a seguir ao 25 de Abril, adere ao Bloco de Esquerda quando este nasce. Integra a Mesa Nacional do novo partido, mas sai em ruptura quando, em 1999, o BE acorda com o PS não levar a votos as alterações eleitorais que imporiam a paridade. Regressa ao PS com Ferro Rodrigues como secretário-geral. Foi candidata nas eleições intercalares à Câmara de Lisboa, em 2007, pelo movimento Cidadãos por Lisboa, liderado por Helena Roseta.
A 22 de Fevereiro, elas, as que lhe chamavam Milena, tiveram a ideia de a homenagear. Organizado em tempo recorde, o livro Que Força É Essa - uma compilação de crónicas e textos de reflexão (muitos dos quais publicados no PÚBLICO), escolhida pela própria já a partir do hospital onde estava internada - é lançado hoje.
"O livro dá-nos uma espécie de retrato da evolução da sociedade portuguesa", diz Maria Isabel Barreno. "Fala de assuntos em que as mulheres são sempre as directamente implicadas. Mas os assuntos das mulheres são assuntos da Humanidade."
Madalena Barbosa escolheu Isabel Barreno para fazer a apresentação do livro que lhe ocupou os últimos dias. "É uma das homenagens que lhe faço. Ela manteve-se incansável. Eu, a certa altura, perdi a pachorra, porque sempre apareciam as mesmas pessoas, que não sabiam nada de nada", admite a ensaísta.
O livro é o último exemplo da "preocupação de simplificação das coisas", considera Maria do Céu Cunha Rego, ex-secretária de Estado para a Igualdade. "Madalena teve o condão de escrever de forma fácil de entender. E de descodificar e de tornar evidente a desigualdade de género e o propósito da igualdade."
"Acho que nunca me vou habituar a falar dela no passado. Tínhamos um código comum. Nenhuma de nós ia recuar, nenhuma de nós ia dizer "estou cansada, que aborrecido falar sempre da mesma coisa". O que nos movia era a consciência absoluta de que as mulheres têm o direito a ser felizes. Hoje fico mais só", confidenciou a escritora Maria Teresa Horta.
A coerência de Milena é o elogio mais frequente. "Morre a maior feminista portuguesa e o maior mede-se em coerência, em princípios, em lealdade, em honestidade. Em momento algum, a Madalena deu o dito por não dito", diz Teresa Horta. "Foi de uma coerência total e absoluta. Nunca se arrependeu da escolha do feminismo. E é muito perigoso ser-se feminista em Portugal."
É essa coerência que a faz ter "uma vida profissional que acompanha a militância pessoal", que a leva a não fazer "qualquer separação entre uma coisa e outra". "Toda a sua vida é esse simultâneo", corrobora Isabel Barreno.
Ao mesmo tempo, Madalena Barbosa "não era conformada, era desassombrada, mas tinha uma atitude de compreensão, mesmo para quem achava que a igualdade era uma parvoíce", acrescenta Maria do Céu Cunha Rego.
A Assembleia da República deverá aprovar hoje um voto de pesar, redigido pelo PS.
Funeral hoje
O corpo de Madalena Barbosa seguirá esta tarde, da Casa Mortuária Santa Joana Princesa para o Cemitério do Alto de São João, onde será cremado, às 23h.
Antes, às 18h, será lançado, na Fábrica Braço de Prata, em Lisboa, o livro no qual Milena deixou um apelo: "Velemos agora pelo futuro, que a nossa força é muita." Madalena Barbosa ainda teve o prazer de ter um dos exemplares na mão e agradeceu-lhes. A elas.