Isto não é uma comédia adolescente

Chamam-lhe o novo "Little Miss Sunshine", ou o "one hundred million dollar baby" da Fox, como que a tentar concorrer na oralidade pop com a própria Juno, a campeã dos comentários inteligentes, a imbatível rapariga- ícone de uma comédia adolescente que foi feita por adultos e que é bem mais um drama e bem mais madura do que quer parecer. "Olá, versão grande e inchada da Juno", diz-lhe o pai ( J. K.Simmons) quando a adolescente de 16 anos entra em casa, muito grávida, antes de lhe perguntar o que andou a fazer. "A lidar com coisas muito para além do meu nível de maturidade", responde a rapariga, enrolada numa camisa de flanela, ocasionalmente vista com "t-shirts" dos Stooges e que diz (muito) mal dos Sonic Youth.

Juno (Ellen Page) engravidou do amigo Bleeker (Michael Cera) por ter decido ocupar o tempo, numa noite de tédio, com sexo casual. Decide levar a gravidez até ao fim, após um encontro à porta de uma clínica com uma activista anti-aborto com problemas com a língua inglesa. Juno decide entregar a criança a um casal ( Jennifer Garner e Jason Bateman) que pôs um anúncio de adopção no equivalente americano à "Dica da Semana".

As políticas de Juno

Se a resenha do argumento de Diablo Cody, "blogger" e arrivista pop, não torna evidentes os piscares de olho a cada tema, tirem-se já as dúvidas. A ideia é fazer humor e desdramatizar essa coisa da gravidez na adolescência. Brincar com a ideia de que os jovens se metem em sarilhos sexuais porque estão aborrecidos, ridicularizar os activistas anti-aborto e retratar de forma assassina o casal que vive numa mansão genérica dos subúrbios - uma dona de casa desesperada e o seu marido castrado pela McVida que ela quer ter.

No entanto, Juno não aproveita o seu direito de fazer um aborto. E faz uma escolha pró-vida. A política de "Juno" - frase que dificilmente se acredita estar a escrever depois de duas horas de colagem anedótica de diálogos mais rápidos do que a própria sombra - já foi amplamente discutida. Há quem defenda que "Juno", juntamente com "Waitress" e "Um Azar do Caraças", títulos também de 2007, é pró-vida. "Não acredito que qualquer destes filmes tenha sido conscientemente criado como propaganda antiaborto", escreve Hadley Freeman no diário britânico "Guardian". "Mas são um produto de uma geração que teve o luxo de um aborto legal e facilmente acessível. O perigo é que nos esqueçamos o que significa realmente a alternativa, e, como resultado disso, o sentimentalizemos".

Ellen Page resolve rapidamente o diferendo, especialmente por ser feminista ("é a defesa a da igualdade entre homens e mulheres, quem é que não seria?"). "Sou a favor da escolha livre das mulheres no que toca ao aborto, mas fico desconfortável com a ideia de que esta adopção [no filme] é mais corajosa do que uma interrupção voluntária da gravidez", disse a actriz à revista francesa "Les Inrockuptibles". A palavra-chave é que Juno decide. Ela é o motor da coisa, do filme, das paixões que o filme gerou.

Uma mulher icónica

O filme custou 6,5 milhões de dólares, menos um milhão do que "Obrigado por Fumar", o filme anterior do então estreante Jason Reitman. Dois meses de exibição nos EUA e um mês no resto do mundo - Portugal junta-se hoje à lista de países de acolhimento - dá a bela quantia de 136,7 milhões de dólares (3 milhões de euros) de receitas. É que "Juno" foi um fenómeno, confirmado com as quatro nomeações para Óscar - Filme, Realizador, Actriz e Argumento. O fenómeno foi de boca-a-boca e "peer-to-peer". "Havia uma falta de personagens femininas adolescentes autênticas... Encarei a escrita deste argumento como uma oportunidade de criar uma mulher icónica", disse Diablo Cody à "Entertainment Weekly".

E criou. Já há "Juno-ismos", imprimem-se as falas mais infecciosas em t-shirts, cantam-se baladas de homenagem no YouTube, a banda sonora foi número 1 da Billboard e há uma minicorrida a telefones em forma de hambúrguer como o de Juno (e que pertence à própria Diablo Cody). Ellen Page terá a ver com isso. "Ela é uma maravilhosa combinação de um intelecto muito além da sua idade e de qualidades que ainda são de uma jovem rapariga. E essas qualidades encantam qualquer um", elogia Reitman.

Em "Juno", Page foge ao registo dramático, mas não às personagens fracturantes a que já se habituou. Aqui é uma actriz engraçada ao melhor estilo "deadpan", humor seco e sem sorrisinhos- âncora, uma protagonista carismática de uma comédia adolescente "indie" que de adolescente só terá o pano-de-fundo: a idade, a escola e o vício por refrigerantes que tingem a língua. É que por mais bem sucedido que esteja a ser "Juno", este filme não é "High School Musical" nem "Os Diários da Princesa". "É uma protagonista adolescente que nunca vimos. Ela veste-se como quer, diz o que quer e não pede desculpas por isso... As raparigas não têm tido esse tipo de personagem. Não temos o nosso ''Uma Agulha No Palheiro'' [o livro de J. D. Salinger]", disse Page à "Entertainment Weekly".

Mas têm "Ghost World" (Thora Birch é como uma irmã mais velha de Juno no sentido de humor e Scarlett Johanson é o lado mais doce), "Heathers" (com Winona Ryder) e "Tempestade de Gelo" (com Christina Ricci a libertarse de um lar podre através do sexo). E também têm "Buffy", "Tal Mãe Tal Filha" ("Gilmore Girls") ou "Veronica Mars", séries de TV cuja velocidade de diálogo e mulheres à frente do seu destino parecem inspirar "Juno". No filme de Reitman ecoa a linguagem televisiva e mesmo da Internet. Não só os actores ( Jason Reitman e Michael Cera foram pai e filho em "Arrested Development - De Mal a Pior", Allison Janney de "Os Homens do Presidente", J.K. Simmons de "The Closer"), mas também esses diálogos que os detractores do filme dizem não ser aplicáveis a adolescentes reais.

"Eu não falo da mesma forma que Juno, mas decididamente tinha a minha própria linguagem com os meus amigos e, nesse sentido, identifico-me com isso", disse Page ao "Guardian". E lá porque vemos todos os dias (mesmo que tentemos escapar-lhes) as notícias sobre a vida de uma certa Hollywood jovem ou porque nas televisões passam "Na Terra dos Ricos" ("The O.C.") ou "Gossip Girl", e os seus sucedâneos MTV de tele-realidade ("Laguna Beach" e "The Hills"), não quer dizer que toda a juventude seja assim. "Ou temos a coisa dos ricos, ''Laguna Beach'', em que a única coisa com que [as raparigas] se preocupam é que ''jeans'' vão usar para impressionar o Bobby", separa Page, "ou a rapariga que se veste de preto e se auto-mutila. Precisamos de outras opções".

Sobre os papéis dados às mulheres nos filmes (repetimos: isto não é uma comédia para adolescentes), Diablo Cody e Ellen Page concordam. "As mulheres muitas vezes são posicionadas como uma estrutura de apoio para os homens", diz Cody. "Suponho que é porque vivemos numa sociedade patriarcal, em que o feminismo é uma palavra feia", completa Page.

Amy Heckerling, argumentista e realizadora, criou os filmes "Viver Depressa" ("Fast Times at Ridgemont High") e "Meninas de Beverly Hills" ("Clueless") para as décadas de 1980 e 1990. E sabe que "os estúdios não gostam de ver as mulheres serem sexuais, festeiras ou desmazeladas. Tudo isso está muito bem para os rapazes." No caso de "Juno", o filme foi sendo rejeitado de estúdio em estúdio. Lianne Halfon, uma das produtoras, admitiu já à imprensa internacional que "eles [estúdios] também estavam preocupados com o facto da Juno ser sexualizada. Para ela, o sexo não é algo de que nos devamos arrepender", mesmo quando resulta numa gravidez indesejada.

"Juno" é um filme sobre uma anti-heroína rabiscado por uma argumentista estreante e por um realizador que trata o tema como Stephen Frears tratou "Alta-Fidelidade": com a mesma esperança de que os "one-liners" que o compõem fiquem na memória colectiva. Só que "Juno", como dizia a personagem de Rollo sobre o teste de gravidez, é um rabisco que já não se pode desfazer. E que vai originar um efeito de cópia que dentro de um ano poderemos ver anunciado como "o novo "Juno"".

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