O trompete romântico do Sr. Rava
"Tocar apenas a melodia de uma música, de forma simples, requer enorme concentração." A frase, proferida por Enrico Rava em antecipação ao concerto, poderia soar a exagero do experiente trompetista, mas a forma como entrou no espectáculo, de olhos fechados, apresentando a melodia com o trompete, confirmou as palavras. A forma como o italiano aborda o seu instrumento revela uma extrema concentração, que só se desvanece quando Rava deixa o trompete para dar espaço a que os restantes membros do quinteto desbravem a sua música. Fruto desta concentração, o som que Rava extrai do trompete é belíssimo e a simples passagem pelas linhas melódicas de cada tema bastaria para nos conquistar. Rava é um sedutor daqueles que já quase não existem. Como se não bastasse a sensibilidade romântica da música, confirma-se no impecável aprumo que coloca na imagem - cabelos longos brancos, bigode irresistível, roupa preta - e nós ficamos na certeza que terá aprendido alguma coisa com um ídolo de juventude chamado Chet Baker. A suavidade e elegância da sua música faz assim parte de um programa bem planeado que poucas possibilidades tem de falhar.Neste projecto The Words and The Days o velho mestre italiano faz-se acompanhar por um quarteto de jovens que apoia e reforça a sua música, com equilíbrio. Antes de mais, destaca-se o trombone de Gianluca Petrella. Excelente instrumentista, Petrella é dono de uma linguagem própria e faz mais do que simples réplica ao trompete de Rava: explora sons e lança-se em caminhos aventurosos. No piano, Andrea Pozza cumpriu o que lhe era pedido, num compromisso entre marcação rítmica e exploração melódica, sem arriscar muito. Já o contrabaixista Rosario Bonaccorso evidenciou-se particularmente com a interpretação a solo da sua composição Sogni Proibiti. Na bateria, substituindo o habitual Roberto Gatto, o jovem português João Lobo conseguiu integrar-se bem na dinâmica de grupo, demonstrando um óptimo sentido rítmico e muita precisão nas intervenções - justificando assim a crescente atenção que ultimamente tem despertado.
O concerto teve previsivelmente por base os temas do disco The Words and the Days (um dos mais unânimes discos jazz de 2007 e responsável, a par do duo com Stefano Bollani, pela recente reavaliação de Rava) e valeu também pelos muitos diálogos que os vários instrumentos iam criando e desenvolvendo entre si. Entre o melhor da noite esteve o duo trompete/trombone na revisão do tema Art Deco, original de Don Cherry, com a originalidade de Petrella a contrastar com a faceta mais lírica de Rava. A passagem pelo clássico Nature Boy, da autoria do obscuro Eden Ahbez e popularizado por Nat "King" Cole, foi uma surpresa feliz e confirmou que o trompete de Rava só tem a ganhar quando opta pelo registo baladeiro (neste âmbito ficamos a aguardar uma passagem do duo Rava/Bollani pelo nosso país). A noite fechou ao segundo encore, com o público a entoar a melodia do velho standard Poinciana num imprevisto dueto com o trompete de Rava. A plateia cheia do CCB confirmou que o romantismo não está, afinal, fora de moda e que o som do trompete continua ainda a seduzir.
Nuno Catarino