O homem no centro da aventura
Muitas são as preocupações que atravessam a obra do artista nascido em Belgrado. E uma acima de todas: a sua perplexidade ante a capacidade que o ser humano tem para esquecer (ou não aprender com) os próprios erros
Enki BilalDesenhador e argumentista
Enki Bilal nasceu em Belgrado (ex-Jugoslávia) a 7 de Outubro de 1951. Chega a França aos 10 anos e é aí que vai crescer e afirmar-se como um dos mais originais e inquietos autores contemporâneos de banda desenhada. Factor determinante no seu percurso pessoal é o conhecimento, em 1975, de Pierre Christin, que lhe confia o desenho de um ciclo de aventuras integrado por O Cruzeiro dos Esquecidos (1975), O Navio de Pedra (1976), A Cidade que não Existia (1977) e As Falanges da Ordem Negra (1979), obras caracterizadas pela "mistura" de fantástico, ficção científica e política em doses iguais. Em 1980 Bilal dá um salto em frente na sua carreira ao propor A Feira dos Imortais, primeira obra em que assina também o argumento. Seis anos depois edita A Mulher Armadilha, segundo volume de um tríptico (Trilogia Nikopol) completado com Frio-Equador (1992). Pelo meio, publica A Caçada, com argumento de Pierre Christin. O Sono do Monstro, publicado em 1998, é a primeira aventura de um novo ciclo temático que se prolonga em 32 de Dezembro (2003), Encontro em Paris (2006) e encerra com Quatre? (2007). Bilal é também o autor de três longas-metragens ficcionais - Bunker Palace Hotel (1989), Tykho Moon (1996) e Immortel, Ad Vitam (2004), este último filme inspirado na Trilogia Nikopol.
a O acto fundador do percurso autónomo de Bilal como criador de banda desenhada é a história A Feira dos Imortais. O périplo acidentado e angustiado de Nikopol - o homem que chega ao futuro depois de 30 anos de hibernação galáctica por um crime que já nem sequer interessa apurar qual foi - prosseguiria em mais duas aventuras que prolongam a convivialidade forçada com o deus Horus, paranóico e arbitrário, que não sabe que o verdadeiro poder sobre a vida está... em não praticar o exercício da morte.
Depois de dar plena expressão aos argumentos de Pierre Christin em excelentes aventuras de matriz "político-ideológica", o artista envereda por uma carreira em que ele é também o autor das histórias que desenha. A condição humana e as suas derivas (filosóficas, psicológicas, existenciais) vão estar no centro da narrativa, e este primeiro álbum constitui uma brilhante metáfora sobre o poder do desejo (neste caso, ao serviço de uma ambição política) e os sortilégios do tempo - veja-se a deliciosa incongruência da coexistência, num mesmo momento temporal, de Nikopol e do seu filho, ambos praticamente com a mesma idade.
O Sono do Monstro é, igualmente, o início de um novo ciclo na obra do artista nascido num país que já não existe. É uma história com várias histórias, percursos narrativos paralelos que, infringindo uma velha lei matemática, estão condenados a encontrar-se.
É evidente o desenvolvimento ficcional de antigas preocupações temáticas, que Bilal puxa até limites de tensão máxima. O desenho do artista parece mais "sujo" e sombrio do que nunca, ilustrando com enorme limpidez - se o paradoxo é permitido - a fealdade de um mundo passado e futuro que não é outra coisa senão a representação da agonia de um ciclo civilizacional.
Depois de assistir, nos Balcãs, à manifestação da barbárie às porta da Europa "civilizada", o que Bilal parece querer dizer-nos é que não é forçoso que a História torne a humanidade mais humana:
"O sono do monstro quer dizer muita coisa. Em primeiro lugar, o monstro que dorme em cada um de nós. E não posso deixar de considerar monstruoso e aberrante que alguém se torne o assassino do seu vizinho simplesmente porque soube que não são ambos da mesma etnia. Projectado à escala planetar, isso significa: "Vocês não pensam como eu, por isso mato-vos... Não suporto que vocês pensem... Vocês não têm o direito a criar nem a serem diferentes... O pensamento é mau." Imaginemos que se leva até ao extremo um pouco do que se vê por toda a parte, que se puxa ao limite a ascensão dos sectarismos, das mafias, da intolerância... chegar-se-á fatalmente a um mundo bipolar. É esse um pouco o tema do álbum em que, de uma assentada, uma ditadura espiritual se transforma num monstro de intolerância à escala do planeta, contra o pensamento, o conhecimento e a memória..."
Assim se chega ao âmago das preocupações - apetece dizer obsessões - que atravessam toda a obra do artista. E, em especial, a sua perplexidade ante a capacidade que o ser humano tem para esquecer (ou não aprender com) os próprios erros. "Mais do que a guerra, é a memória que me preocupa, essa falência perpétua da memória que faz com que a História não cesse de se repetir. A Shoah não impediu a purificação étnica, e Sarajevo é para mim a cidade-emblema dessa falência da memória", afirmou Bilal em entrevista ao diário francês Libération.
O autor sugere, assim, que o antídoto para os males do mundo passa pela luta individual contra o esquecimento, portadora de uma promessa de mais consciência e de uma possibilidade de redenção do ser humano.
Coube à editora Meribérica-Liber o privilégio de publicar pela primeira vez em Portugal álbuns de Enki Bilal: A Cidade que não Existia, O Cruzeiro dos Esquecidos e A Feira dos Imortais (todos com desenho de Bilal e texto de Christin) surgiram em 1982. No ano seguinte, foi dado à estampa pelo mesmo editor Memórias d"além Espaço (bandas desenhadas assinadas apenas por Bilal), enquanto várias histórias curtas saíam no Jornal da BD a partir de Maio. O actual editor de Bilal é a Asa, que já colocou no mercado quatro álbuns.
(Pesquisa de datas: Leonardo de Sá)