Cecília Supico Pinto
Quebrou um silêncio com mais de três décadas e autorizou a publicação de uma biografia que evoca sobretudo os anos da guerra colonial. Líder do Movimento Nacional Feminino, Cilinha foi a mulher que, entre 1961 e 74, tentou servir a propaganda da política colonial do regime
a Foi o primeiro momento de visibilidade. Em 1949, quando o general Norton de Matos lançou a sua candidatura à Presidência da República, o país assistiu a uma inédita mobilização feminina conservadora. A iniciação na política de um vasto grupo de mulheres, maioritariamente católicas, fez-se através do Movimento Nacional Feminino (MNF), então liderado por Maria Teresa Andrade Santos. O MNF servia, então, dois propósitos: apelava à participação activa na campanha eleitoral do marechal Carmona e assumia-se como uma espécie de movimento de resistência contra as ideias propagadas pela Comissão Feminina do Movimento de Unidade Democrática.
Depois das eleições, a palavra de ordem que as mulheres do MNF exclamavam nos comícios de Carmona - "ao serviço de Deus, da pátria e da família, o vosso grito de mulher será sempre apenas este: presente!" - não se fez ouvir com tanto estrépito. O MNF entrou em hibernação. Até 1961.
Para quem acreditava, como Cecília Supico Pinto, que Portugal ia "do Minho a Timor", o início da guerra nas "províncias ultramarinas", como ainda hoje designa Moçambique, Angola e Guiné, não era o momento para recuos ou hesitações. Cecília, educada numa família da alta burguesia lisboeta e assumidamente monárquica, fez despertar o MNF e, na qualidade de sua presidente, apelou à mobilização das mulheres para o apoio moral e assistencial aos soldados que partiam para a guerra.
Em 1963, já António de Oliveira Salazar, que então proibira todas as associações de mulheres que não fossem agregadas ao regime, reconhecia publicamente os efeitos das acções do MNF junto das tropas que combatiam no Ultramar. "Elas servem de apoio aos que são tentados a descrer e hesitam e perturbam com dificuldades que vós não receais e nós estamos seguros de vencer", disse o então Presidente do Conselho, recolhendo uma ovação de centenas de mulheres.
Na frente de combate
Há mais de três décadas que o nome de Cecília Supico Pinto desapareceu da esfera pública (com a excepção da referência que Pedro Abrunhosa lhe fez numa entrevista ao Ípsilon, no ano passado, a propósito da "caridadezinha" que abomina). Depois dos anos de silêncio, Supico Pinto decidiu aceitar o desafio da historiadora Sílvia Espírito Santo e contar um pouco da sua vida, centrando as recordações nos 13 anos da guerra colonial.
O resultado dessas conversas que se alongaram por quatro anos é o livro Cecília Supico Pinto - O rosto do Movimento Nacional Feminino (Esfera dos Livros), hoje apresentado por Anne Cova e Fernando Dacosta na Sociedade de Geografia, em Lisboa, às 18h30. Com a excepção do Expresso (ao qual deu uma entrevista), a antiga líder do MNF, hoje com 86 anos, manteve a sua recusa em falar com a comunicação social.
A obra de Sílvia Espírito Santo não é uma biografia no sentido clássico do género. Não se limita a transformar o livro num longo depoimento, nem faz dele um repositório de memórias. Rejeitando a ideia de escrever uma biografia laudatória ou hagiográfica, a investigadora do Centro de Estudos das Migrações e Relações Interculturais procurou "o rigor", cruzando as recordações de Cecília com factos históricos, depoimentos de mulheres do MNF, historiadores e antigos combatentes, e também com a literatura sobre a guerra colonial.
Durante os anos da guerra, Cilinha, como era conhecida, foi mais do que o rosto do MNF. Pertencente ao topo da hierarquia do regime, era ela quem personificava todas as actividades do movimento feminino - com um curso de Enfermagem na bagagem, viajou incessantemente pela Guiné, Angola e Moçambique, entrou pelo mato dentro, vestiu um camuflado para acompanhar os soldados na linha da frente dos combates (o "baptismo de fogo" aconteceu nos arredores de Mueda, Moçambique), aprendeu a disparar, dormiu ao lado de uma G-3, foi ferida pelos estilhaços provocados pelo rebentamento de uma mina, na Guiné. Escreve a autora do livro que Cecília "trabalhou para e entre homens", um acto "socialmente reprovável" no Portugal da segunda metade do século XX.
Ao P2, Sílvia Espírito Santo define-a como uma mulher "paradoxal": porque "tem posições avançadas na defesa do empenhamento social das mulheres, mas é uma antifeminista primária". As causas para as quais ela apelava estão longe de traduzirem a emancipação das mulheres portuguesas. Até porque, sob a capa do apoio prestado pelo MNF, o movimento operava a doutrinação ideológica e moral junto das mulheres e dos combatentes.
Em finais de 60, Cecília não poupou as mulheres que se organizaram contra a política colonial. Por isso, considerou como um acto de "guerrilha internacional" a reunião, em Helsínquia, da Federação Democrática Internacional das Mulheres, na qual participou uma comitiva portuguesa do Movimento Democrático das Mulheres.
Vigiada pela PIDE
Quando Cecília iniciou a sua "missão" no MNF, uma organização "patriótica" de apoio aos militares e às suas famílias, não descurou nunca os seus "deveres" enquanto "dama" do regime. Era casada com Luís Supico Pinto, que começou por ser subsecretário de Estado das Finanças, foi ministro da Economia, presidente da Câmara Corporativa e membro do Conselho de Estado.
As importantes funções que o marido foi exercendo aproximaram-na do Presidente do Conselho. O historiador José Freire Antunes, citado no livro, designa-a como o "duplo feminino" de Salazar. Ao P2, a historiadora explica: "Ela tem a personalidade que ele gostaria de ter: é culta, desinibida, bem-nascida. Por isso, ele sublimava-a".
Salazar gostava de ouvir as anedotas que ela contava. Mas a relação não se alimentava apenas de uma admiração mútua. Cilinha fazia-lhe relatórios sobre o que via e ouvia quando regressava dos teatros de guerra e, para o chefe do Governo, esta mulher era o perfeito meio de propaganda no terreno militar e junto da opinião pública. A recompensa que ela recebeu foi esta: dentro e fora do regime, houve quem a visse como a "primeira-dama" (foi o caso de Adriano Moreira, ministro do Ultramar entre 1961 e 1962, conforme se pode ler no livro).
A relação próxima que mantinha com Salazar não impediu que o seu telefone estivesse sob escuta e que todos os seus passos fossem vigiados pela PIDE, conforme se pode constatar no arquivo da PIDE/DGS, na Torre do Tombo. Questionada sobre o assunto, Cecília explicou que tinha conhecimento destas acções de "vigilância" e que nada tinha a esconder. "Acho que, a certa altura, ela pensou que estava acima da PIDE", nota a investigadora, "porque não evitava certo tipo de conversas e chegava mesmo a chamar este e aquele de fascista. Ela não tinha medo, é certo. Mas acho que a PIDE a vigiava para a proteger."
Cecília parecia conhecer de cor as malhas do salazarismo e sabia quais as regras para uma boa convivência, o que lhe garantia um chorudo subsídio do Ministério da Defesa e do Ministério do Interior. Entre essas regras estava a ausência de qualquer tipo de reclamações. Só assim se justifica o facto de o Ministério de Defesa se ter apropriado, sem burburinhos, de várias propostas idealizadas pelo MNF. A saber: a gratificação de isolamentos dos militares em serviço nas fronteiras, nova legislação para militares universitários, subvenções para as famílias, deslocação e pagamento dos funerais dos militares mortos em combate.
Para o MNF, e para a sua presidente, restavam os "louros" do envio de tabaco e de revistas e da iniciativa das "madrinhas de guerra", uma cópia do trabalho realizado pela Cruzada das Mulheres Portuguesas, liderada por Ana de Castro Osório, durante a I Guerra Mundial.
Até 1974, a edição de revistas foi uma das faces mais visíveis do trabalho do MNF: primeiro surgiu a Presença, depois a Guerrilha e, finalmente, a Movimento. Na sede, na Rua das Janelas Verdes, em Lisboa, um pequeno estúdio de rádio emitia para Angola, Moçambique e Guiné o programa Espaço e foi nesse mesmo estúdio que o MNF gravou o disco Natal 71, uma colectânea que provocou polémica porque foi distribuída nos campos de guerra, onde, como se podia imaginar, não existiam gira-discos.
"Exibicionismo" em África
As reacções dos combatentes às actividades do MNF e às visitas a África de Supico Pinto foram as mais diversas, constatou Sílvia Espírito Santo. "A partir da segunda metade da década de 60, os militares mais politizados atacam o MNF como forma de atacar o regime. Há outro tipo de militares que dizem os maiores insultos sobre ela e há ainda uma faixa que vive dessas memórias e que enaltece o trabalho do movimento", explica a investigadora, que recorreu ao romance Os Cus de Judas, de António Lobo Antunes, para olhar o MNF pelos olhos dos que partiam: "Reencontrei-as [as senhoras do MNF] no portaló do barco na manhã da partida, encorajando-os com maços de cigarros Três Vintes e apertos de mão viris em que as falanges, falanginhas e falangetas se articulavam entre si por intermédio dos anéis de brasão." Mas, fora dos territórios da guerra, houve também ferozes ataques a Supico Pinto. Vinham sobretudo da Rádio Portugal Livre, emitida em Argel pela Frente Patriótica de Libertação Nacional, que a acusava de "exibicionismo" nas incursões a África.
A isto somou-se a fria e distante relação que Cilinha mantinha com Marcelo Caetano, nomeado Presidente do Conselho em 1968. Ela temeu que ele pusesse cobro à guerra, considerava-o "desconfiado", dizia que lhe chamavam "o pisca". Sílvia Espírito Santo nota que a animosidade já tinha muitos anos: "Ele tomou posições sobre a monarquia que desagradaram a Cecília e ao marido. E quando Luís Supico Pinto estava no Ministério da Economia, Marcelo foi uma das pessoas que mais o criticaram por não saber resolver os problemas económicos do pós-guerra".
Olhando para as atrocidades da guerra, para o crescente número de mortos e estropiados e para as péssimas condições de vida dos combatentes, Cecília nunca vacilou na sua crença por uma nação "pluricontinental e plurirracial"? "Ela sempre acreditou que o regime resolveria qualquer problema. E só nas vésperas do 25 de Abril é que alertou para a necessidade de se fazer alguma coisa, pois considerava que a contestação no meio militar estava fora de controlo", diz a autora.
A 25 de Abril de 1974, Cecília rumou para a sede do MNF. "Tinha a presunção de que, como eram os militares que faziam a revolução, ela estaria protegida." Ditado o fim da guerra colonial, o MNF tinha os dias contados. E a sua sede também, que foi depois ocupada pela famosa 5.ª Divisão, comandada pelo coronel Varela Gomes. Em Junho de 74, o movimento foi oficialmente extinto e Cecília Supico Pinto remeteu-se a um silêncio de décadas.
Quando Sílvia Espírito Santo visitou a Rua das Janelas Verdes, em busca de recordações sobre o trabalho do MNF, alguém lhe perguntou se era da PIDE. "Respondi que a PIDE já não existia e a pessoa disse-me: "Isso é o que a senhora pensa"."