Tenente Pires
É uma história de filme, um drama épico. A história de um oficial português que ajudou a evacuar de Timor, invadido pelos japoneses, centenas de portugueses, em três operações heróicas. Morreu às mãos do invasor. Por São José Almeida
a Não foi numa praia do sul de Timor que a vida de Maria de Lourdes Cal Brandão se cruzou para sempre com a de Elisa Pires. As duas fugiram quase ao mesmo tempo, mas por praias diferentes. Acabaram por se juntar, dias depois, no campo de refugiados de Armindale, na Austrália.Maria de Lourdes era uma jovem de 27 anos, mulher de Carlos Cal Brandão, um advogado português deportado em Timor desde 1931, acusado de estar envolvido num movimento revolucionário. Foi a primeira das duas a sair da ilha, no fim de 1942, durante as evacuações em massa de Timor, que estava a ser bombardeado pelos japoneses.
Maria de Lourdes fugiu de Díli e atravessou a ilha pelo Monte Ramelau com mais 80 pessoas, uma fuga organizada pelo marido e pelo tenente Pires. Quando chegou ao sul, embarcou num dos navios australianos que transportaram 700 pessoas, todas brancas, a partir da praia de Betano. "No momento em que as coisas acontecem, temos de as fazer. Na altura, não se pode hesitar," diz ao P2 Maria de Lourdes Cal Brandão, hoje com 93 anos, lembrando a travessia que fez, a pé, durante dias seguidos.
Pela mesmo altura, da praia de Aliambata, a 10 de Janeiro de 1943, parte Elisa Pires, de oito meses, filha de Domingas Boavida, timorense, e do tenente Pires, o oficial português organizador da fuga e que ainda hoje é visto em Timor como um herói. O navio holandês no qual Elisa e a mãe embarcaram, com mais 54 pessoas, foi o primeiro no qual foram evacuados timorenses. Este é o resultado, escreve o investigador António Monteiro Cardoso em "Timor na 2ª Guerra Mundial - O Diário do Tenente Pires" (editado pelo ISCTE) de uma bem sucedida pressão do tenente Pires e de Cal Brandão junto dos australianos para que a evacuação inclua também timorenses.
No fim da guerra, segundo António Monteiro Cardoso, morreram entre 40 a 70 mil pessoas em Timor, uma quebra de mais de 10 por cento da população da ilha. Uma chacina que o tenente Pires e Cal Brandão tentaram evitar, ficando em terra com o objectivo de conseguir evacuar todos os refugiados.
Lobby na Austrália
Um mês depois, a 10 de Fevereiro de 1943, a partir da praia de Barique, o tenente Pires aceita ser evacuado com um grupo de timorenses e portugueses num submarino americano, porque acredita que fazer contactos directos na Austrália será mais eficaz para salvara os que ficaram para trás. E até Junho desse ano, de facto, o tenente desdobra-se em contactos com as autoridades australianas, escreve a diversas personalidades, entre elas Salazar e Getúlio Vargas, presidente do Brasil, apelando a que libertem Timor e salvem os portugueses e timorenses escondidos nas montanhas.
Os ventos da política internacional não estavam a seu favor. Os Aliados e os EUA não tinham Timor como prioridade. Salazar defendia abertamente a permanência dos portugueses no território, para que este pudesse manter-se português, o que impedia uma evacuação.
É então que o tenente Pires, persistente, consegue que os australianos o levem de novo para Timor com um pequeno grupo de operacionais portugueses - Patrício Luz, Casimiro Paiva e Alexandre Silva. Chegam no início de Julho de 1943 e juntam-se ao grupo de Cal Brandão. O tenente Pires cumpre então a sua palavra: a 3 de Agosto faz evacuar para a Austrália mais 87 civis, portugueses e timorenses, a partir de Barique. E, de novo, fica em terra, acreditando que os Aliados e o Estado português iriam libertar Timor dos japoneses. Eles foram, sim, mas só depois de o Japão abandonar a ilha.
Em Setembro, em fuga com outro grupo de portugueses e australianos, e ferido numa anca, Manuel de Jesus Pires é preso pelas tropas japonesas. Morrerá pouco depois, em data incerta, numa prisão japonesa.
Bebé viaja para Lisboa
Nessa altura, Elisa Pires, a bebé desta história, filha do tenente Pires, vivia há nove meses no campo de refugiados de Armidale, com a mãe, Domingas Boavida, e os outros cinco filhos do pai e a mãe de quatro destes, Maria Helena da Silva. Assim como Maria de Lourdes Cal Brandão.
Três anos depois, já a paz fora restabelecida, regressam todos a Timor. Todos, menos Carlos Cal Brandão e a mulher. As autoridades portuguesas não o deixam desembarcar. "Foi segunda vez deportado", ironiza agora a viúva em declarações ao P2, na sua casa, em Cascais.
Perante o inesperado e percebendo que sem a protecção deste casal branco da burguesia da metrópole, o seu bebé, fruto de uma segunda relação, poderia passar por dificuldades, Domingas Boavida entrega Elisa a Maria de Lourdes e Carlos Cal Brandão. O bebé veio para Portugal, onde foi criado - Elisa ainda hoje considera os Cal Brandão os seus pais.
A viagem de regresso dura meses, param em todas as colónias, até que aportam em Lisboa em Fevereiro de 1946, rumando depois ao Porto, onde Cal Brandão, advogado, tem os pais e o irmão Mário, que será Governador do Porto a seguir ao 25 de Abril de 1974.
Memória construída
Hoje com 65 anos, a imagem que Elisa tem do pai biológico é construída. Uma espécie de memória dos outros que lhe foi transmitida. Elisa Pires nunca conheceu o pai, Manuel de Jesus Pires, oficial português que ficou para a história como o tenente Pires e viveu mais de 20 anos em Timor.
Elisa aprendeu com os padrinhos a preservar a memória do pai. E é visível o orgulho com que fala dele. "Penso que, como militar republicano respeitava a pátria e a honra e que pôs isso em prática. Depois, a responsabilidade do povo que governava fê-lo realmente lutar por aquilo que achava melhor para os timorenses. Foi uma pessoa de bastante coragem. Que se sujeitou a tudo para levar as ideias dele para a frente", diz, acrescentando: "Ele tinha aquele compromisso e, custasse o que custasse, tinha que cumpri-lo. Era uma questão de honra. Era uma pessoa de palavra, daquelas "custe o que custar". Foi aquilo a que se propôs e foi aquilo que fez."
A história deste homem é de romance, se fosse americano já seria um filme. Um filme onde Elisa Pires, seria uma das personagens mais cativantes - a bebé que aos três anos é entregue pela mãe timorense ao casal português num acto de abnegação. "Quando nasci, a minha mãe tinha 16 anos, era uma gentia, sem grandes instruções, penso que tenha tomado essa atitude pensando em mim", diz Elisa, que nasceu a 22 de Abril de 1942, em Baucau, distrito timorense de que o tenente Pires foi administrador. "A minha mãe nunca me escreveu, apesar de educada numa missão católica. Conheci-a, quando [já adulta] regressei a Timor. Veio ver-me a Díli. Foi uma visita e um encontro não como mãe e filha, porque éramos desconhecidas. Gostei de a conhecer, mas éramos desconhecidas. Nessa altura já tinha outros filhos, já tinha refeito a sua vida. Ainda hoje vive perto de Baucau", conta.
Ao longo dos anos, a jovem Elisa corresponde-se com os seus meios-irmãos, José, Manuel, Mário, Julieta, António e Jaime - os últimos dois vivem hoje em Portugal, Manuel vive na Austrália, e José e Julieta já morreram. Este é um contacto que foi considerado prioritário pelos Cal Brandão. "Os meus padrinhos, principalmente o meu padrinho, tiveram sempre a preocupação de não me deixar esquecer o meu pai. Levou-me aos meus avós paternos que viviam no Porto, fui várias vezes fazer visitas", lembra.
Ao fim de quatro anos no Porto, Elisa entra, como interna, no Colégio da Liga dos Combatentes, "que era para depois poder ingressar no Instituto de Odivelas, porque era filha de oficial". Mas em 1952 a entrada foi recusada. "A explicação que me deram foi que o meu pai não era casado com a minha mãe, isto quando um oficial português era proibido de casar com gentios. Não sei se foi por isso, se foi pela atitude do meu pai durante a guerra."
Elisa faz então a escola comercial e, em 1967, volta a Timor, onde trabalha durante dois anos na Repartição Provincial dos Serviços de Administração Central. Mas Timor "era um ambiente muito fechado, pequeno, para quem estava habituado à cidade do Porto: havia cinema duas vezes por semana, uma vez para os chineses e outra para os portugueses, a praia e mais nada. E os filmes eram antiquíssimos. Era uma vida muito parada." Nesses dois anos, vive em casa da mãe dos irmãos, Maria Helena da Silva, a quem chamava "avó", pois "era uma senhora idosa". Em 1969, como o irmão Jaime estava em Angola, na Força Aérea, Elisa vai para Luanda, onde fica até à descolonização, altura em que veio para Lisboa como funcionária da empresa na qual trabalhava em África, a Celcat, de que é hoje reformada.
O diário
Quando regressa a Timor, Elisa Pires depara-se com a força da memória do pai e o seu prestígio entre os timorenses. "Toda a gente me falava dele e depois, mais tarde, construíram-lhe um monumento [em 1973], mas antes já havia a Ponte Tenente Pires, em Viqueque. Era uma pessoa conceituada, até pelos próprios indígenas, porque lutava por Timor e por eles. Sempre foi muito igualitário, contribuiu para que houvesse evacuação de timorenses durante a guerra."
É a história que dá origem a esse prestígio que é relatada no livro de António Monteiro Cardoso, escrito com Luísa Tiago de Oliveira. Uma obra que foi possível porque, além de Elisa, os Cal Brandão trouxeram também para Portugal os cadernos com o diário do tenente Pires.
A partir do Natal de 1942, em plena fuga pelo interior de Timor, Pires começa a anotar o quotidiano do grupo. Um relato que continua na Austrália e que termina antes de entrar no submarino no qual regressou a Timor para morrer.
O diário, que Carlos Cal Brandão deu a Elisa antes de morrer, em 1973, fora-lhe entregue por um amigo comum e fez a travessia de barco para Portugal escondido na bagagem de uma amiga de Maria de Lourdes.
Para António Monteiro Cardoso, este diário é "o brado de um homem isolado e abandonado pelo seu país e pelos Aliados e que, não obstante não desiste, movido pelo cumprimento da palavra dada. O relato de um drama humano de alguém a quem ninguém dá ouvidos. A sua honestidade leva-o para a missão que sabe que não tem saída".
Como exemplo, o investigador que recuperou a história do tenente Pires, escolhe uma passagem: "Caso não consiga o transporte rápido daqueles que em mim confiaram e me mandaram fazer este frete, regressarei de avião e lançar-me-ei de pára-quedas, pois jamais abandonarei à sua triste sorte aqueles que em mim confiaram, embora nisso arrisque a minha vida."
Manuel de Jesus Pires nasceu no Porto, a 6 de Março de 1895, filho de José Pires e de Elisa de Jesus Pires. Estudou na Faculdade de Ciências do Porto e na Escola de Guerra, onde acabou o curso de Infantaria em 1917. No Verão desse ano, foi para França, no Corpo Expedicionário Português, regressou depois a Portugal, onde ajudou a combater a Monarquia do Norte e a depor Paiva Couceiro no ano seguinte.
Em Junho de 1919 é requisitado pelo ministro das Colónias, João Soares, pai do ex-Presidente Mário Soares, para ir para Timor. O então alferes Pires chega a Timor a 25 de Setembro de 1919, com 24 anos. É aí que passará o resto da sua vida até morrer, em 1943, aos 48 anos, como prisioneiro de guerra dos japoneses.
Nesses mais de 20 anos, o tenente Pires fez carreira como militar e como funcionário civil. Logo em Novembro de 1919 foi nomeado comandante militar de Viqueque, cargo que exerceu até 1928. Foi também chefe dos serviços de Fomento Agrícola, ajudante de campo do governador, comandante militar do enclave de Oecussi, administrador civil de Manatuto, governador de Fronteira e, a partir de 1937, governador de Baucau. S.J.A
Em 1946, Elisa Pires veio para Portugal com Maria de Lourdes Cal Brandão no navio Angola. Hoje, sessenta anos depois, permanecem ligadas.