As dúvidas dos netos da Praça de Maio
Os filhos das vítimas da ditadura argentina, adoptados por vezes pelas famílias dos militares que lhes mataram os pais, começam a descobrir as suas histórias. As avós nunca desistiram
de os encontrar. Mas às vezes são eles que preferem não ser encontrados
a A mãe olhou para a bebé recém-nascida e deve ter pensado como a poderia proteger. Agarrou na agulha com que tinha sido cosida depois do parto e furou as orelhas da criança, colocando em cada uma um fiozinho azul. Era tudo o que podia fazer para que mais tarde ela fosse identificada. Quinze dias depois, os militares que a mantinham presa levaram-lhe a criança. Ela, a mãe, seria torturada e morta. Hoje, Victoria Donda sabe que esta é a sua história. Mas durante 27 anos, esta argentina hoje com 30 pensou que tinha uma história muito diferente, que se chamava Analia e que os seus pais eram um oficial da marinha e a mulher dele. Hoje, quando fala deste homem a quem durante anos chamou pai, chama-lhe "apropriador" e, conta, o diário britânico Times, não consegue dizer o nome dele.
O "apropriador" chama-se Juan Antonio Azic e é um dos muitos militares que, na altura da chamada Guerra Suja argentina (entre 1976 e 1983), adoptou uma das crianças órfãs dos milhares (perto de 30 mil) de militantes de esquerda mortos ou "desaparecidos" às mãos da junta militar. Calcula-se que cerca de 500 crianças tenham sido retiradas aos pais muito pequenas ou logo após o nascimento, e entregues a famílias, em muitos casos de militares que sabiam e tinham participado nos crimes.
Durante décadas, as avós destas crianças - que formaram o célebre movimento das Mães e Avós da Praça de Maio - procuraram os filhos desaparecidos e, a partir de certa altura, tentaram identificar os netos e recuperá-los. Actualmente, graças aos testes de ADN, é mais fácil saber quem são os verdadeiros pais das crianças, e até agora as avós já conseguiram identificar 88 netos.
A pouco e pouco, nos últimos tempos, as histórias destas crianças foram sendo conhecidas, e contadas primeiros nos jornais argentinos, depois em filmes e documentários. Quem sou eu?, da realizadora Estela Bravo, que acaba de ganhar o prémio para melhor documentário no festival de cinema latino-americano de Havana, conta algumas delas. Como a de Horácio Pietragalla que, segundo um artigo do Guardian sobre o filme, se sentiu sempre como "um gato criado numa família de cães" por ser tão diferente dos pais. Ou a de Juan Cabandié, que decidiu processar o homem que pensava ser o seu pai, e que se afastou da mãe, porque, apesar de esta ser "uma pessoa adorável", ele não consegue "compreender uma mentira que durou 25 anos".
Mas não é fácil dizer a uma criança que nada do que ela sabe da sua vida é verdade e que, provavelmente, as pessoas que a criaram foram responsáveis pela morte dos seus verdadeiros pais.
Será o melhor para eles?
Há quem queira saber, e quem não queira. Victoria Donda - que entretanto se tornou a primeira neta de vítimas da junta militar a ser eleita para o Congresso Nacional da Argentina - queria saber a verdade, embora, como explicou ao Times, tenha sido "muito difícil, horrível". O seu "apropriador" não conseguiu lidar com a culpa e, ao saber que ia ser acusado de rapto de crianças e tortura de prisioneiros, deu um tiro na cabeça. Apesar disso, sobreviveu e vai ser julgado. Victoria não consegue ultrapassar completamente a ambivalência de sentimentos. "Sou filha dele: a sociedade não me pode pedir para o julgar", explicou ao Guardian. "Eles criaram-me e eu ainda o amo. Ele é responsável, está preso, e vou visitá-lo. [...] O amor funciona de forma diferente. Se o nosso filho se transformar num serial-killer não vamos deixar de o amar".
Rosa Roisinblit, cuja filha desapareceu em Outubro de 1978, grávida de oito meses, também procurou o neto durante anos, e em 2000 conseguiu finalmente encontrá-lo. Mas percebeu que as coisas não eram tão "idílicas" como imaginara. "Quando os seus apropriadores foram presos, ele mudou completamente. Eles roubaram-no e roubar uma criança é um crime. Mas fizeram-no sentir-se culpado". A certa altura, o rapaz pediu à avó que não lhe telefonasse mais, mas ela não desistiu e conseguiu reaproximar-se dele.
A grande questão é, resume o Guardian, e se as "crianças recuperadas" não quiserem ser recuperadas? Há casos, como o de Evelyn Vauez, que se tem recusado a dar sangue para o teste de ADN, e que já conseguiu que um tribunal lhe reconhecesse o direito de "não querer conhecer a sua verdadeira identidade".
O medo da prisão
O facto de os pais adoptivos poderem ir parar à prisão tem assustado muitas pessoas, sobretudo as que suspeitam ter sido criadas por militares. "Se descobrem que foram "apropriados", os pais podem ir parar a prisão", explicou ao Post-Gazette Cláudio Gonçalves, que foi adoptado por um casal civil. "No meu caso fazia sentido saber a verdade. Mas é terrível para os que estão numa família militar. Muitos devem estar à espera que os pais adoptivos morram antes de irem ter com as Avós da Praça de Maio."
Ninguém tem uma boa resposta para o dilema. O jornalista Roger Cohen contou recentemente no International Herald Tribune como durante 20 anos acreditou que ajudara duas crianças "a sair da selvajaria da ditadura, a encontrar a sua verdadeira identidade e a ter vidas melhores". Hoje tem dúvidas de ter feito o melhor quando investigou e denunciou um casal, um antigo oficial da polícia argentina e a mulher, que tinha dois filhos gémeos. O artigo de Cohen foi publicado no Wall Street Journal, as crianças foram retiradas ao casal, o "pai" foi preso e o jornalista nunca mais pensou muito no assunto. Agora, conta, voltou a Buenos Aires, procurou os dois rapazes e encontrou "mais feridas abertas do que reconciliação". Os gémeos continuaram ligados à mãe, não conseguiram relacionar-se com o tio verdadeiro e acabaram numa "família de substituição". "A justiça que eu ajudara a conseguir", escreve Cohen, "transformara-se para eles num lar destruído a seguir a outro lar destruído". E conclui: "Terá a minha intrusão valido a pena? Para os mortos e para a Argentina, acho que sim. Para os gémeos, não sei."