Notícia dos sermões do padre António Vieira pregados no CCB
Maratona de leitura levou ontem cinco escritores a ler excertos de sermões do padre jesuíta do século XVII, iniciativa que contou com larga assistência
a Acorreu ontem o povo, em grande número, a ouvir os sermões do padre António Vieira que, durante toda a tarde, foram relidos em voz alta por escritores actuais. Deu-se o facto nos lugares de Belém, em Lisboa, no edifício contemporâneo do centro cultural, que, por umas horas, ouviu o eco da voz barroca do missionário jesuíta do século XVII: ontem mesmo, completaram-se 400 anos sobre o nascimento de António Vieira. Pregadores foram Rodrigo Guedes de Carvalho, António Mega Ferreira, Gonçalo M. Tavares, José Tolentino Mendonça e Armando Baptista-Bastos. Coube ao primeiro o Sermão da Sexagésima, texto que abre a edição crítica dos Sermões, de Vieira, cujo primeiro volume ontem mesmo foi posto à venda. "E então ver cabecear o auditório a estas cousas, quando devíamos de dar com a cabeça pelas paredes de as ouvir!"
Na Cafetaria Quadrante, muita gente se vira na contingência de estar de pé, por já não haver assento para tantos. Não esperavam os responsáveis do CCB tamanha afluência, de tal forma que teve que se mudar do café para uma sala grande: "Surpreende-me a afluência, não o sucesso, porque as pessoas adoram ouvir ler, há uma partilha quase religiosa de voltar ao princípio da leitura", diria depois Mega Ferreira.
Guedes de Carvalho entoava o sermão procurando a oratória e a entoação correcta. Mega Ferreira havia de buscar a discrição na leitura que fez do Sermão da Primeira Dominga do Advento, Gonçalo M. Tavares deu um tom intimista ao Sermão da Nossa Senhora do Ó, José Tolentino Mendonça leu o Sermão de Quarta-Feira de Cinzas com a poesia que lhe sai da alma, e Baptista-Bastos comentou e fez a apologia do Sermão aos Peixes.
Vozes plurais para um homem único, um "escritor extraordinário", na expressão de Guedes de Carvalho. Que, não sendo incondicional de Vieira, reconhece a "construção frásica, as mudanças de ritmo muito boas, a redundância martelante, a escrita de "jorro" de Vieira".
No texto do primeiro domingo do Advento, leu Mega Ferreira sobre os pecados da omissão e da consequência: "Sabei, cristãos, que se vos há-de pedir estreita conta do que fizestes, mas muito mais estreita do que deixastes de fazer." Pecados, para os crentes, ou actos gravosos, para os não-crentes, que ainda hoje são os actuais, dizia Mega Ferreira. Nesse sermão, Vieira "evita o óbvio": em vez de falar do juízo final e pintar "dantescos quadros do fim dos tempos", vai o missionário falar do que "é importante: a salvação".
Gonçalo M. Tavares leu um magistral sermão, o da Senhora do Ó, sobre "a não diferença entre o signo e a coisa, algo estranho para nós" hoje. A letra Ó, dizia, "tem uma realidade e uma consequência: a barriga grávida, o som, a forma geométrica, permite uma multiplicidade de interpretações do mesmo signo mínimo".
Tolentino Mendonça escolheu o sermão do dia que ontem a liturgia católica assinalava: Quarta-Feira de Cinzas: "Assim comecei eu o ano passado quando todos estávamos mais longe da morte mas hoje que também estamos todos mais perto dela, importa mais tratar do remédio que encarecer o perigo." Num tempo em que a própria Igreja se confronta com uma crise de linguagem, a modernidade de Vieira, diz Tolentino Mendonça, é "dizer que é preciso acreditar na palavra".
Em Vieira, Baptista-Bastos vê uma "súmula de cultura" semelhante à de Aquilino Ribeiro, uma "modernidade alucinante", um homem "do progresso, que enfrenta a inveja e o ciúme". Aos peixes, dizia Santo António na versão de Vieira: "Eis aqui, peixinhos ignorantes e miseráveis, quão errado e enganoso é este modo de vida que escolhestes. Tomai o exemplo nos homens, pois eles não o tomam em vós."