Mapuche Não lhes toquem na terra
O povo que mora para lá do Bío Bío, a caminho do fim do Chile, não gosta que lhe toquem na terra. E quando isso acontece há problemas. Há séculos que é assim, desde os incas. E continua a ser, hoje, com os winkas, como chamam aos brancos, e as suas pistas de aterragem, barragens, fome de ferro e madeiras preciosas. Por isso, Janeiro foi um mês infortunado para os índios mapuche. Por Fernando Sousa
a Os mapuche respiraram de alívio quando souberam no fim de Janeiro que a sua mais recente heroína, Patrícia Troncoso, 37 anos, desistira da greve da fome e vergara o Estado chileno. Acabava em bem uma batalha de 112 dias, com algum espaço nos media locais e alguns de fora - um pequeno intervalo numa luta que tem centenas de anos e se vai agudizar neste e nos próximos.Tudo começou quando "La Chepa", como os companheiros a tratam, condenada a dez anos de prisão por "terrorismo", disse que não voltaria a comer enquanto não revissem a sua sentença, melhorassem as condições de detenção de outros presos e ouvissem o que tem a dizer sobre os direitos do seu povo. Isso foi no dia 10 de Outubro e ninguém em Santiago lhe ligou. Desde então perdeu 30 quilos e só não morreu porque, no hospital de Chillán, no centro Sul do país, onde foi internada, as autoridades a alimentaram à força através de tubos e a Igreja Católica intercedeu.
Patrícia Troncoso, uma antiga estudante de Teologia, foi julgada duas vezes por terrorismo, sob leis feitas pela ditadura de Augusto Pinochet, uma por pertencer a uma organização de direitos mapuche, a Coordenadora Arauco-Malleco (CAM), ilícita, e sempre absolvida. Mas a terceira vez que foi a tribunal, acusada do incêndio de uma área indígena entregue a uma empresa madeireira, a Mininco, acabou condenada.
O episódio fechou em bem quatro semanas que abalaram a Araucanía, a região com mais população original. O pico desses dias infernais foi a morte de Matias Catrileo, 22 anos, membro da CAM, abatido a tiro por carabineiros, diz-se que pelas costas, quando tentava com outros companheiros ocupar a fazenda de um agricultor na comuna de Vilcún, 670 quilómetros a sul de Santiago. Em dois outros incidentes, grupos de cara escondida e armados atacaram e queimaram camiões de madeireiros e cercaram um posto policial onde pensavam que estavam companheiros detidos.
Alguém que ouça os índios
A luta dos mapuche - e também dos aymara, rapa ni, likarantay, quechuas, colas, diaguitas, kawashkar, selkmans - é como a de outros povos do continente. Exigem o que sentem que é seu, em primeiro lugar a terra, ou pelo menos serem ouvidos em tudo que se relaciona com ela. Os winkas, como chamam aos brancos, chegam e fazem o que querem, desviam rios, fazem barragens, estendem linhas de alta tensão, constroem aeroportos e estradas onde entendem, cortam árvores, exploram minas, poluem lagos. Inundam zonas sagradas, alagam cemitérios. E pelo meio abrem ou exploram divisões entre o grupo.
Uma das regiões em tumulto é a comuna de Panguipulli, província de Valdívia, rica em recurso naturais, para onde estão pensados sete megaprojectos hidroeléctricos. Os rios ameaçados, entre outros, são cinco, mais uma série de lagos e uma muito rica biodiversidade. Os habitantes acham que vai haver um "massacre ambiental". E por arrasto prejuízos numa das actividades com que ainda convivem bem: o turismo.
Outra é o aeroporto que o Governo pretende construir em Temuco, na IX Região. A ideia é tê-lo pronto com outras obras no bicentenário da independência, em 2010. O terminal terá um edifício de 5 mil metros quadrados e uma pista de 2440 metros, que poderá ser ampliada até aos 3200. A obra é apresentada como essencial para a dinamização da região. Mas os mapuche não vão ganhar nada com isso, bem pelo contrário.
A comunidade local, cerca de 5 mil pessoas, não está para sofrer com o barulho dos boeings ou a respirar os gases dos motores, acusando as autoridades de não terem feito todos os estudos ambientais necessários para avaliar os reais impactos económicos, sociais e culturais da construção. E a alcaide da zona disse que os indígenas "vão ter de fazer as cerimónias religiosas com aviões a passarem sobre as cabeças".
Na VIII Região, na zona do lago Lleu Lleu, o problema é uma empresa mineira. Os mapuche já tinham aqui um contencioso com madeireiros. Agora é com mineiros, em busca de ferro e magnetite. Temem que a exploração, no interior da Área de Desenvolvimento Indígena, comprometa as águas. Dizem ainda que o chão a ser esburacado é território "sagrado".
A zona é velha em conflitos. Ali se lutou entre 1860 e 1925. "Em 1935 entregaram a terra aos mapuches. O cerro Treng Treng é sagrado. É aí que pedimos à natureza que cuide de nós. Os nossos antepassados lutaram para conservar a sua cultura. Não há dinheiro que possa pagar isso", protestou Martiniano Nahuenthual nas páginas de um semanário do lugar, o Punto Final.
Bom, e o Parque Pumalín - o famoso Parque Pumalín. A região, de cerca de 270 mil hectares, pertence a um multimilionário norte-americano. Mas o problema não é ele, Douglas Tompkins, que aliás adquiriu a zona para a preservar de atentados. O problema é a Transelec, que se prepara para plantar torres e estender cabos ao longo de 2 mil quilómetros de florestas e bosques primitivos. A rota foi definida na sequência de discussões com o proprietário, que não terá conseguido garantir a inviolabilidade de todo o percurso. Os trabalhos vão começar em 2009.
O parque, adquirido para se tornar um santuário da natureza, constitui o arquétipo dos conflitos ambientais no país, pois mostra o confronto ideológico que ocorre ali em matéria ecológica, diz Marcel Claude, economista da Universidade do Chile. A discussão traz frente a frente os partidários do projecto modernizador, a maior parte do Governo e a direita política e económica, por um lado, e um conjunto muito heterogéneo de cidadãos que defendem a necessidade de reorientação do modelo de desenvolvimento, por outro. Isto é, entre os defensores do neoliberalismo e os que têm uma cosmovisão do espaço ameaçado.
Alguém que ouça a ONU
Assim acabou 2007, um ano em que o Estado chileno fez pouco ou nada pela nação mapuche, diz José Aylwin, director do Observatório de Direitos Indígenas. No plano jurídico, tem a seu crédito o voto positivo que deu à declaração dos direitos dos Povos Indígenas, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Setembro. Mas foi tudo. O Senado não ratificou o Convénio 169 da OIT, que espera a sua aprovação desde 1991. O diploma reconhece aos povos indígenas direitos colectivos, como a participação e a autonomia, a terra, o território e os recursos naturais. E o Congresso recebeu um novo projecto de reforma constitucional onde se dispõe que a nação chilena é "multicultural" e se reconhece a existência dos povos originários que habitam no território, e o seu direito a conservar, desenvolver e fortalecer a sua identidade, idiomas, instituições e tradições sociais e culturais, mas a sua aprovação é duvidosa.
Assim acabou 2007 e assim vai ser em 2008, prevê Aylwin, que diz ainda que o Estado não só não ouve os mapuche como não ouve o Comité de Direitos Humanos da ONU, que em Março pediu a Santiago que ponha termo à violência policial sobre as suas minorias, consulte os indígenas sobre os projectos previstos para os seus territórios, modifique a lei antiterrorista e respeite os direitos dos povos autóctones, o mundo de coisas que levou Patrícia Troncoso a tribunal e à prisão, e quase à morte.