A guerra das baleias
Este ano, o confronto dos ambientalistas com a frota baleeira japonesa está especialmente intenso, com o Governo da Austrália a assumir novo protagonismo. Neste confronto de emoções em alto mar não há solução à vista
a Nos fundilhos do globo, lá para os mares da Antárctida, as canções das baleias não conseguem abafar a gritaria de surdos que tem a frota baleeira japonesa de um lado e os navios dos ecologistas defensores destes grandes mamíferos marinhos do outro. A emoção é o cerne da polémica sobre a caça à baleia. As acusações de falta de coerência com os últimos dados científicos são brandidas por ambos os lados. Uns consideram óbvio o argumento moral de que não há hoje qualquer necessidade de caçar estes grandes animais, outros consideram esta ideia uma forma de imperialismo cultural e acusam os ambientalistas de fazerem dinheiro à custa do lema "salvem as baleias".Desde que a frota baleeira japonesa se fez ao mar na campanha deste ano - em Novembro de 2007 -, as notícias de confronto em alto mar e da investida contra a caça à baleia do novo Governo trabalhista australiano de Kevin Rudd têm-se sucedido.
A Austrália mandou um navio e também um avião para os mares da Antárctida para recolher informação que poderá ser usada para combater a caça à baleia para fins de investigação científica feita pelo Japão todos os anos. E lá estão também os navios das organizações de defesa do ambiente Greenpeace e Sea Shepherd Conservation Society, com o objectivo de impedir que sejam mortas baleias - mas divididas por uma intensa rivalidade.
O fim do óleo
Os grandes mamíferos marinhos foram caçados até à quase extinção por algumas das nações que hoje mais se opõem ao seu abate - Estados Unidos, Reino Unido e Austrália, por exemplo -, e em grande parte por causa do óleo de baleia. Parece-se mais com uma cera, e tinha múltiplas aplicações, desde candeeiros e velas até curativos para as feridas dos soldados.
O reconhecimento de que era preciso fazer alguma coisa para travar o desaparecimento iminente de muitas espécies surgiu logo em 1946, e foi criada a Comissão Baleeira Internacional. Mas, até à década de 70, a limitação da caça foi muito pouco eficaz.
Só quando foram inventados substitutos do óleo de baleia e essas grandes nações baleeiras deixaram de caçar é que se começou a pensar seriamente em impedir a caça comercial destes animais. "As sociedades que abandonaram a caça à baleia caçavam-nas principalmente por causa do óleo", defende o canadiano Milton Freeman, do Instituto Circumpolar Canadiano, na Universidade de Alberta, antropólogo especialista no estudo na caça aos grandes mamíferos marinhos.
Só as nações onde a caça à baleia era uma ocupação tradicional, e a sua carne era usada na alimentação - e não apenas a sua gordura - continuaram interessadas em matar baleias: Japão, Noruega, Islândia e Canadá. "Os noruegueses vêem a caça à baleia como parte da vida dura e honrada do pescador", escreveu Freeman na revista The Atlantic. "Os japoneses, que vêm de uma longa linhagem de baleeiros, têm profundas convicções morais sobre a necessidade de manter tradições familiares. Impedi-los de honrar os seus antepassados é uma fonte de vergonha", adiantou Freeman, que defende que é preciso voltar a permitir a caça a algumas espécies de baleias.
Em 1986 foi estabelecida uma moratória sobre a caça comercial, em que a única excepção prevista era o abate de baleias para investigação científica - para avaliar o estado das populações, e eventualmente vir a levantar a proibição da caça. É ao abrigo desta excepção que o Japão continua a matar centenas de animais - embora os opositores digam que não há uma produção científica nipónica que o justifique.
Imperialismo alimentar
Mas a proibição não foi levantada até agora, e a Comissão Baleeira tornou-se um palco de disputas políticas e culturais: entraram para este órgão muitas nações sem tradição de caça à baleia, uns para apoiar os opositores ao abate destes grandes mamíferos, liderados por países como os Estados Unidos e a Austrália, outros devedores das ajudas ao desenvolvimento prestadas pelo Japão e outros países baleeiros. O resultado é uma discussão estéril.
A Noruega nunca aceitou a moratória e a Islândia chegou a retirar-se da comissão. O Japão ameaça agora retirar-se. No entanto, Tóquio não desistiu de tentar fazer passar a mensagem de que está a ser vítima do imperialismo cultural do ocidente - embora a carne de baleia não seja hoje muito apreciada pelos japoneses, pois a maior parte é dura e fibrosa. Mas há tentativas com patrocínio oficial para a adaptar ao gosto das novas gerações - em hambúrgueres ao estilo americano, por exemplo. No entanto, há grandes stocks de carne de baleia congelada no Japão, a que o mercado não dá vazão.
"A cultura gastronómica é algo que se forma segundo o ambiente e a história de cada país e região, e o espírito de respeito mútuo é imperativo. Há quem critique os japoneses por comerem as baleias, animais meigos. Isto constitui um ponto de vista limitado e exclusivo que negligencia a diversidade cultural e alimentar no mundo e que não quer admitir a existência de diferentes culturas e modos de vida alimentares", escreve o conselheiro da embaixada do Japão em Portugal Masahiko Kobayashi, numa carta enviada ao P2.
"Este argumento não se põe facilmente de lado. Dizem que os países ocidentais se opõem à caça à baleia porque, para eles, as baleias são animais especiais, como as vacas para os hindus", como que responde Peter Singer, especialista em bioética da Universidade de Princeton (EUA) e famoso pelas posições radicais em defesa dos animais, num artigo de opinião no jornal The Australian. Mas não concede a vitória aos japoneses: "A melhor resposta a este argumento é que causar sofrimento desnecessário a seres sentientes não é algo visto de forma diferente de cultura para cultura. É uma das orientações de uma das principais tradições éticas do Japão, o budismo. Mas as nações ocidentais estão numa posição fraca, pois infligem muito sofrimento desnecessário aos animais."
Certo é que a guerra japonesa pelo direito à excepção cultural não tem tido grande recepção. O Japão tenta argumentar que a autorização para matar baleias-anãs não faria mal nenhum à conservação desta espécie, que é hoje abundante: "De acordo com a Comissão Baleeira Internacional, existiam cerca de 760 mil baleias-anãs em 1999 no oceano Antárctico", escreve Kobayashi.
"O número de baleias-anãs obtidas na caça de investigação realizada pelo Japão representa 850 baleias (oscilando em cerca de dez por cento acima ou abaixo deste número), ocupando apenas 0,1 por cento da totalidade dos recursos. De acordo com os cientistas, mesmo que cacemos cerca de 7600 baleias-anãs, representando um por cento dos recursos, nunca afectará negativamente a conservação."
Este ano, o Japão apostou mais forte, anunciando a intenção de abater também 50 baleias-de-bossa - as preferidas dos observadores de baleias, pelas suas exibições de saltos -, dizendo que já seriam suficientemente abundantes para serem caçadas. O que só reforçou o encarniçamento da resposta dos grupos ambientalistas que costumam perseguir os navios nipónicos para a Antárctida, e também a pressão política da Austrália e dos Estados Unidos. Face a tudo isto, o Japão acabou por aceder em adiar o abate desta espécie por dois ou três anos.
A questão ética
Mas o grande fosso que separa o Japão das nações, pessoas e organizações que se opõem à caça à baleia já não é o argumento da possibilidade de extinção destes animais. O que está em causa é a ética de matar seres com emoções e capacidades de comunicação sofisticadas - e a investigação nesta área tem sido muita activa nos últimos anos, criando a ideia de que muitas espécies têm culturas: chimpanzés, orangotangos, elefantes...
"Não defendo que a caça à baleia deve parar porque as baleias estão em risco de extinção. Sei que muitos especialistas em ecologia e biólogos marinhos o diriam. O que eu digo é que as baleias são animais sociais com grandes cérebros, capazes de apreciar a vida e de sentir dor, e não apenas dor física, mas muito provavelmente também aflição por perderem membros do seu grupo", escreveu Peter Singer no The Australian.
As baleias suscitam emoções muito fortes nos humanos, de facto. E há quem diga importar-se mais com elas do que com os homens - como é o caso de Paul Watson, o líder da Sea Shepherd Conservation Society, uma organização que protagoniza acções de alguma violência em alto mar, como danificar as hélices dos navios japoneses com redes, ou ameaçar bater nas embarcações.
O momento transformador de Watson, conta ele, foi uma acção em 1975, ainda com a Greenpeace - da qual foi um dos fundadores, mas acabou por ser expulso, devido à violência das suas acções - para travar a frota baleeira soviética. Estava num barco de borracha e viu o navio soviético a arpoar baleias; uma dirigiu-se a grande velocidade para o seu bote. "Foi um susto terrível, no início", contou Fred Easton, o cameraman que estava com Watson no barquinho, citado na revista New Yorker. Mas a baleia - um macho enorme - passou por eles sem virar o bote, embora tenha voltado para os ambientalistas um enorme olho, que os fez pensar que compreendia que eles estavam a tentar ajudá-lo. "Nesse instante, a minha vida transformou-se e encontrei um novo objectivo", escreveu Watson, que tem muitos fãs entre as celebridades, como os actores Martin Sheen, Sean Penn ou Uma Thurman.
A rivalidade com a Greenpeace, que todos os anos persegue os navios baleeiros japoneses, é bastante evidente. Na semana passada, por exemplo, a Greenpeace recusou-se a dar a Watson a localização dos navios japoneses, por exemplo. A Greenpeace está a tentar abordar a questão de outra maneira - uma delas é pedir a grandes empresas japonesas que esclareçam qual a sua posição face à caça à baleia.
A Canon, o maior fabricante de máquinas fotográficas digitais, recusou-se a condenar a caça, diz o site Bloomberg. Mas esta campanha já levou três das maiores empresas japonesas de alimentos marinhos (Kyokuyo, Maruha e Nippon Suisan Kaisha) a deixar de vender carne de baleia, depois da Humane Society International ter apelado aos consumidores norte-americanos para que boicotassem os seus produtos.
A posição do Japão e outras nações baleeiras não é muito popular - até no Japão está a decair, diz a Greenpeace. Mas a indústria baleeira é apoiada pelo establishment nipónico, que expressa a sua opinião alto e bom som nos meios de comunicação e, segundo Chris Hogg, correspondente da BBC em Tóquio, apresenta o conflito como uma questão de soberania. "Tanto quanto sei, nenhum político teve a coragem de se interrogar publicamente se a preservação da indústria baleeira compensa os danos que esta posição faz à reputação internacional do Japão", escreveu no site da televisão britânica.
Não se vê uma saída fácil para este choque cultural que tem como arena os mares. "Não há ciência capaz de nos dizer se podemos ou não matar baleias", diz Peter Singer. "O desejo do Japão em continuar a abatê-las não é menos motivado pela emoção do que a oposição dos ambientalistas."