Torne-se perito

Rei D. Carlos morreu porque estava a reformar o país

É impossível avaliar a figura de D. Carlos sem entender o que foi a monarquia constitucional, defende o historiador e cronista Rui Ramos

a O destino do penúltimo rei de Portugal, D. Carlos, ficou traçado quando tentou que João Franco fosse a alavanca das mudanças políticas e económicas que todos defendiam e ninguém concretizava. Isolado entre os velhos políticos monárquicos e odiado pelos republicanos, morreria assassinado a 1 de Fevereiro de 1907. Seguia numa carruagem aberta e com pouca protecção apesar de, três dias antes, a 28 de Janeiro, ter abortado em Lisboa uma tentativa de golpe de Estado.
Viagem a esses dias guiados por Rui Ramos, um biógrafo de D. Carlos e do seu último primeiro-ministro, João Franco. Licenciado em História pela Universidade Nova de Lisboa e doutorado em Ciência Política pela Universidade de Oxford, Rui Ramos é investigador principal do Instituto de Ciências Sociais e colunista do PÚBLICO.
PÚBLICO/RR - O regicídio foi fruto de vontade popular? Os portugueses estavam fartos de D. Carlos?
Rui Ramos - O regicídio deve ser visto no contexto da época, sobretudo após o falhanço da tentativa de golpe de Estado que estava preparada para 28 de Janeiro, três dias antes. É esse falhanço que leva um dos grupos armados a realizar o atentado contra a família real quando esta regressava de Vila Viçosa. Não conhecemos ainda todos os pormenores da conspiração, mas sabemos que aquele grupo tinha participado nas reuniões dos que, desde meados do ano anterior, preparavam um golpe de Estado. Sabemos que nessas reuniões se falou umas vezes de um atentado contra o rei, outras contra o chefe do Governo, João Franco.
Esse grupo acabaria por ser descoberto pela polícia, o que permitiu que, quando avançaram a 28 de Janeiro, a maioria dos seus membros fosse presa. Não sabemos porém se o grupo que actuou no Terreiro do Paço recebera ordens dos líderes da conspiração, ou se actuou por conta própria.
O país estava cansado da monarquia ou foi um gesto de uma pequena facção revolucionária?
Não é correcto dizer que o país estivesse cansado do rei. Este era muito discutido pelos políticos porque estávamos num regime político em que as eleições não eram vistas como um instrumento de provocar a mudança dos governos. A alternância dependia muito do rei, que, ao escolher um Governo, dava uma oportunidade a um outro partido de subir ao poder. Na época já havia eleições, já existia um sistema representativo, mas o eleitorado não era visto pela classe política como sendo capaz de tomar uma decisão consciente.
Era por isso o rei que interpretava o sentimento geral e fazia rodar o pessoal político. Não podemos dizer por isso que o rei fosse impopular, antes que era muito discutido pelos políticos e nos meios políticos. O que se passava em 1908 era que o rei optara nomear para o Governo João Franco, chefe de um pequeno partido que se esperava viesse a ganhar as eleições, e isso tinha irritado imenso toda a classe política.
D. Carlos era o rei inteligente e reformista que, na sua biografia, sugere ter sido o melhor dos monarcas da IV Dinastia, ou era o estouvado que entregou o poder a um ditador, João Franco?
D. Carlos era um monarca constitucional muito consciente da necessidade de defender a Constituição liberal vinda dos tempos de D. Pedro, até porque sabe que é rei pela Carta Constitucional. Ser um rei constitucional nessa época significava reinar com partidos e serem estes a governar. O que D. Carlos fizera desde que chegara ao trono fora tentar encontrar líderes políticos capazes de mobilizarem a classe política para evitar que, ao recorrer demasiado aos seus poderes constitucionais, ele próprio se expusesse.
Começou por tentar ressuscitar os grandes partidos da monarquia, o Regenerador e o Progressista, mas em 1906, 1907, chegara à conclusão de que as velhas lideranças partidárias estavam gastas e desacreditadas, mas não concluíra que o regime estava apodrecido. Procurou assim criar elementos para uma nova rotação de partidos.
Mas porque é que escolhe João Franco?
João Franco não é um político desconhecido. Já tinha sido ministro, era deputado desde 1885, vinha do partido Regenerador, era alguém que o rei, que era muito cauteloso, já conhecia. O que é que ele tem que os outros políticos não tinham? Tem a determinação, é um político corajoso, ao contrário dos velhos líderes, que temiam e recuavam perante os problemas e se socorriam do rei para os resolver. Como a reforma das finanças públicas, da Casa Real ou do sistema eleitoral, passando para círculos uninominais, temas antes muitos debatidos e que geravam consenso.
Era um ditador? Governou em "ditadura"...
O termo ditadura na tradição constitucional no século XIX tem um significado completamente diferente da do século XX. Queria dizer apenas que o Governo podia governar por decreto-lei enquanto o Parlamento estava fechado. Houve vários momentos de governo de "ditadura" na monarquia constitucional.
Implicava uma redução das liberdades e garantias?
Não. A ditadura, na tradição romana, referia-se apenas à acumulação no executivo do poder legislativo. Não implicava com as liberdades formais.
Como é que essa imagem de um rei constitucional, preocupado com a sua missão, se compagina com a imagem mais conhecida de um rei folião, que gostava de caçar, de pintar, de vestir bem, de realizar explorações marítimas?
Essas características de D. Carlos têm sido distorcidas e ampliadas para difamar o rei. Mesmo que quisesse, ele não se podia distrair dos negócios públicos. Os políticos gostavam de ter o rei do seu lado porque o seu poder dependia do rei. Há até áreas, como a Defesa e os Negócios Estrangeiros, que acompanha muito de perto. Agora ele cumpria com os seus deveres, mas ao mesmo tempo não deixava de passear, de ter uma vida ao livre. Gostava de levar uma vida cosmopolita e de vestir de forma elegante.
Isso entrava em choque com os dois modelos de homem público dominantes em Portugal, a do homem piedoso e clerical, a do homem cívico e republicano, ambas muito assentes num certo tipo de austeridade, de sacrifício. Saber que o rei se vestia de acordo com a última moda era muito mal visto pela burguesia, que não achava que isso fosse próprio.
Os portugueses gostam de governantes austeros?
De certa forma, durante o século XX, uma das manhas dos governantes, umas vezes sinceramente, outras hipocritamente, passa por esta imagem de austeridade, de um modelo quase sacerdotal. Salazar era o monge no poder. E julgo que isto em parte sucede porque o poder em Portugal pode muito, razão porque os portugueses ainda apreciam os que se sentam na cadeira do poder dizendo que o fazem a contragosto, com sacrifício, sem tirar vantagem nenhuma daquilo.

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