Agressões contra médicos e enfermeiros já são crime público
A Direcção-Geral da Saúde registou 90 casos de agressões a profissionais de saúde em 2006. No ano passado, os números caíram para metade, mas isto porque, neste caso, denunciar não compensa
a Murros, empurrões, insultos e ameaças. A violência contra médicos e enfermeiros ameaça tornar-se tão comum como os estetoscópios nos hospitais e centros de saúde portugueses. Em 2006, chegaram ao Observatório de Violência Contra Profissionais de Saúde no Local de Trabalho 90 denúncias de profissionais de saúde agredidos por utentes e familiares destes. No ano seguinte, o número baixou para os 42 registos, segundo a Direcção-Geral da Saúde (DGS), cujos responsáveis admitem haver uma subdenúncia das situações. Neste caso, como na violência doméstica, a maior parte das agressões tende a ficar silenciada. Porque as vítimas estão desprotegidas perante a lei, porque o recurso ao tribunal exige tempo e dinheiro, porque o mais fácil é pedir a transferência de serviço ou desistir.
No meio disto tudo, "os profissionais continuam a assumir que o papel deles é cuidar das pessoas e quase que desculpam porque entendem que o agressor está numa situação de fragilidade", explica Guadalupe Simões, do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP), segundo a qual o mais comum é os profissionais de saúde responderem às situações continuadas de violência com depressões, quebra na produtividade, faltas ao trabalho e baixas médicas.
Que o assunto é sério prova-o o facto de o procurador-geral da República, Pinto Monteiro, ter decidido incluir a violência contra médicos e enfermeiros nos crimes de prevenção e investigação prioritária na lei de política criminal para o biénio 2007-2009. No mesmo plano, portanto, das ofensas à integridade física dos professores, da violência doméstica, do tráfico de pessoas e dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores, conforme determinado na Lei n.º 51/2007, de 31 de Agosto.
Os avisos do PGR
"A sensação de impunidade tem que acabar", avisou Pinto Monteiro, que, na passada semana, enviou uma circular aos magistrados e agentes do Ministério Público (MP) exortando os procuradores-gerais distritais a solicitar às administrações hospitalares que passem a comunicar "todos os factos susceptíveis de integrarem crimes de natureza pública praticados contra médicos ou outros profissionais de saúde".
Na prática, estas agressões passam a poder revestir-se de carácter de crime público, ou seja, não estão dependentes de queixa para o MP actuar. "Foi um passo importantíssimo, porque a partir deste momento a impunidade tem os dias contados", congratulou-se Carlos Arroz, do Sindicato Independente dos Médicos (SIM).
"Até agora, um médico que fosse agredido no seu local de trabalho tinha que se deslocar a uma esquadra de polícia para fazer queixa e as despesas inerentes corriam a suas expensas, mesmo se estivesse a trabalhar para um patrão que é o Estado. Por outro lado, a sujeição a um processo jurídico é um processo penoso em que o médico tem que se expor e arranjar uma série de testemunhas para conseguir uma condenação. Portanto, o mais normal é que a pessoa desista", acrescenta o presidente do SIM, para quem "a passagem deste crime a público vai acabar com a inacção e com o medo entre os profissionais".
Neste momento, o departamento jurídico do SIM está a acompanhar vários casos de agressões a clínicos. "Até agora tivemos três condenações, com direito a indemnização ou retractação simples em que o condenado é obrigado a pedir desculpa, por exemplo, num jornal da terra", diz Carlos Arroz.
A Ordem dos Médicos, segundo o bastonário Pedro Nunes, também criou recentemente um fundo de despesa e um seguro para apoiar as vítimas. Mas o pior é quando são as próprias administrações dos hospitais ou dos centros de saúde as primeiras a querer abafar os casos. "Há 20 anos, as instituições eram geridas por profissionais de saúde. Agora, são-no por gestores com total inapetência para perceber que isto é um problema", critica Carlos Arroz.
A enfermeira Guadalupe Simões lembra-se de um colega que morreu depois de ter sido espancado por um doente. "O enfermeiro tinha ficado uma noite sozinho num Serviço de Psiquiatria - o que nunca devia acontecer, porque quando um doente descompensa os outros descompensam muito depressa. Faleceu dois ou três dias depois de ter sido espancado e o caso foi abafado, até porque o hospital não quis assumir que a morte tinha decorrido do espancamento."
Novo estudo "é urgente"
Mas vamos aos números. Ou à falta deles porque, como lembra o médico e investigador André Biscaia, "o que se conhece está desactualizado e é urgente fazer um novo grande estudo sobre a problemática". Os últimos estudos datam de 2002. Nesse ano, a DGS constatou que 75 por cento das instituições do Serviço Nacional de Saúde tinham tomado conhecimento de casos de violência.
Outro estudo, promovido pela Associação para o Desenvolvimento e Cooperação Garcia d"Orta e de cuja comissão científica André Biscaia fez parte, concluiu que 36,8 por cento dos profissionais de um hospital tinham sido vítimas de um episódio de violência. Num centro de saúde abordado pelo mesmo estudo, a percentagem subia para os 60 por cento.
Quanto às reacções, e no caso da violência verbal, apenas 11 por cento das vítimas tinham denunciado o caso por escrito. E apenas dois por cento iniciaram processo judicial. No caso de violência física, nenhuma denúncia chegou a ser formalizada. Em ambos os casos, os doentes ou os seus familiares são os principais culpados.
Foi na sequência de números como aqueles, e de vários casos mediatizados, que surgiu o Plano Nacional de Saúde 2004-2010 a pedir "tolerância zero" para este tipo de violência. Em 2006, a DGS criou o referido observatório, mediante o qual criou um sistema de registo on-line dos episódios de violência.
"No primeiro ano houve uma sensibilização para o problema e tivemos mais queixas. Depois, as pessoas deixaram de estar tão sensibilizadas", explica Anabela Candeias, daquele organismo.
O mesmo que recomendou a constituição, em cada unidade de saúde, de um grupo coordenador institucional de abordagem da violência. Foi um passo importante mas que parece ter caído no saco roto do esquecimento. "Houve uma consciencialização para o problema mas o fenómeno está longe de estar controlado", concluiu Biscaia.
42
Total de casos de agressões a médicos e enfermeiros reportados à Direcção-Geral da Saúde ao longo de 2007